24 de Março de 2019, Domingo: Deus disse a Moisés: “Eu Sou aquele que sou”. E acrescentou: “Assim responderás aos filhos de Israel:`Eu sou’ enviou-me a vós”. E Deus disse ainda a Moisés: “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó,enviou-me a vós’.Este é o meu nome para sempre,e assim serei lembrado de geração em geração (vv. 14-15).

1ª Leitura: Ex 3,1-8a.13-15

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação no Antigo Testamento (AT). Depois da aliança com Abraão (Gn 15) no domingo passado, ouvimos hoje um trecho fundamental sobre a vocação de Moisés (Ex 3-4).Ela parece ser inserida entre 2,23 (morte do farão) e 4,19 (Javé Deus manda o fugitivo Moisés voltar ao Egito). Nesta vocação, Deus envia Moisés e lhe revela seu nome Yhwh (Javé) em 3,14. Vários elementos em Ex 3-4 assemelham-se à vocação de Jeremias (Jr 1) que poderia ter sido modelo deste relato, talvez escrito por escribas na corte do rei Josias por volta de 620 a.C. (Jeremias apoiava as reformas de Josias inspiradas no livro de Deuteronômio).

Encontramos um segundo relato da vocação de Moisés (não em Madiã, mas no Egito) em 6,2-13 e 6,28-7,7, que é uma releitura do envio de Moisés (2,23-3,20). Segundo esta tradição sacerdotal na época do exílio, Javé, enquanto Deus único, se apresentou aos patriarcas como El Shadai (cf. 6,2s; Gn 17,1-27) e como Javé se revela só agora a Moisés.

Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro,sacerdote de Madiã.Levou um dia, o rebanho deserto adentroe chegou ao monte de Deus, o Horeb(v. 1).

Moisés tinha que fugir do Egito e parou na terra de Madiã (divisa da Jordânia com Arábia Saudita). “Madiã” (ou Midian) designa tribos nômades, que vivem a leste e no sul da Palestina (hoje a divisa da Jordânia com a Arábia saudita). Os madianitas são nômades conhecedores de caminhos e poços do deserto ao sul e ao leste do mar Morto (cf. Gn 37,36; Nm 10,31; 1Rs 11,18).

Num poço da região, Moisés defendeu as filhas de Jetro-Raguel, “sacerdote de Madiã”, que lhe deu sua filha Séfora como esposa (cf. Gn 24,11; 29,1-3; Jo 4,6).A variação do nome do sogro de Moisés revela narrativas de diversas origens no Êxodo: Raguel, 2,18; Jetro 3,1; 4,18; 18,1; Hobab, filho de Raguel, o madianita, Nm 10,29; Hobab, o quenita, Jz 1,16; 4,11.A influência do sacerdote Jetro a Moisés (cf. cap. 18) poderia indicar a origem do culto a Javé em Madiã.

Pelo casamento e pelo trabalho (como pastor, não como sacerdote), Moisés se incorpora à vida destes nômades; só o nome do seu filho Gersom (=estrangeiro residente) lembra a sua origem (2,22). Moisés reencontrou ali o modo de vida dos patriarcas, seus ancestrais (nomadismo e pastoreio), como também as tradições patriarcais (segundo Gn 25,2, Madiã pertence aos filhos de Abraão). Desse modo, Moisés está apto a ouvir o chamado do Deus de seu ancestral Abraão (3,6), mas só “muito tempo depois” (2,23), quando já tinha “oitenta  anos” (7,7), Javé Deus apareceu a Moisés em Madiã e revelou seu nome.

Era menor e menos complicado guiar o rebanho de Jetro do que depois a grande população de Israel, oprimida e desunida no Egito. “Levou um dia, o rebanho deserto adentro e chegou ao monte de Deus, o Horeb” (cf. 17,6). Horeb (hebraico: “seca”) é o nome da montanha do Sinai (cf. 4,27; 17,6; 18,5; 19,1.18) na redação deuteronomista (Dt 1,6.19; 4,15; 5,2;… 1Rs 19,8), talvez para evitar uma alusão do Sinai a deusa lunar dos assírios e babilônios, Sin. Em Eclo 48,7 se usa os dois nomes juntos.

Apareceu-lhe o anjo do Senhor numa chama de fogo,do meio de uma sarça. Moisés notou que a sarça estava em chamas,mas não se consumia, e disse consigo: “Vou aproximar-se desta visão extraordinária,para ver porque a sarça não se consome” (vv. 2-3).

O “anjo do Senhor” é o próprio Deus sob a forma na qual ele aparece aos homens (cf. Gn 16,7; 21,17; 22,11etc.). O fogo é elemento da divindade (Gn 15,17; Ex 13,21s; 14,24; 19,18; Sl 50,3; 97,3), energia inacessível que gera luz e vida, mas simboliza também ira e castigo de aniquilação. A sarça, arbusto silvestre e desprezado, é tomada pela presença divina (cf. a presença do espírito no corpo humano; a presença de Deus no fugitivo idoso Moisés, no povo hebreu humilhado, mas eleito; no NT, nos apóstolos simples da Galileia, cf. At 2; 2Cor 4,7…).

“A sarça estava em chamas, mas não se consumia”,não se consome porque não precisa de combustível, é um fogo transcendental que não destrói. A tradição cristã viu na sarça ardente um símbolo da virgindade de Maria preservada pelo Espírito Santo (Lc 1,34s). No pé do monte Sinai foi construído o “mosteiro de Stª. Catarina” (porque, pela lenda, anjos levaram o corpo da santa de Alexandria ao monte vizinho do Horebe depois monges a sepultaram). Neste mosteiro se mostra ainda uma sarça que descendia daquela de Moisés.

“Visão extraordinária”, outras traduções: coisa estranha, fenômeno estranho.

O Senhor viu que Moisés se aproximava para observare chamou-o do meio da sarça, dizendo: “Moisés! Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. E Deus disse: “Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa” (vv. 4-5).

Moisés, curioso, queria se aproximar para observar melhor. Mas Deus o chama duas vezes pelo nome e o detém. O homem não deve pisar no terreno sagrado com artifícios que o encobrem (sandálias de couro, a pele de animal morto). O pé descalço há de sentir o contato da terra consagrada. Nos rituais africanos, nos “terreiros”, dançar com os pés descalços significa absorver a energia da terra (voltando simbolicamente à África).

“O lugar onde estás é uma terra santa”, ou seja,chão sagrado. O termo “Terra Santa” para designar Israel só aparece depois do exílio em Zc 2,16 (cf. 2Mc 1,7). Com a concentração do culto, Jerusalém será a cidade santa, e o monte Sião com o templo, o monte santo. Mas lá celebrava-se sempre a entrada solene de Javé que vem de fora (do deserto, do Sinai) para morar neste lugar (cf. Sl 24; 68 etc.)

E acrescentou: “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Moisés cobriu o rosto, pois temia olhar para Deus (v. 6).

A aparição se identifica como o Deus dos patriarcas: Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó.” Significa que Deus estabelece relações confidenciais com os homens. Manifesta-se no fogo, mas é um Deus das pessoas. Sempre cria relações, estabelece aliança e faz amizade. Está queimando de amor pelo povo que está sob o peso do faraó.

No relato todo domina o verbo “ver, olhar”. “Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus” (cf. 33,20; 33,33-35; 1Rs 19,13; os judeus costumam cobrir a cabeça na sinagoga).

E o Senhor lhe disse: “Eu vi a aflição do meu povoque está no Egito e ouvi o seu clamorpor causa da dureza de seus opressores. Sim, conheço os seus sofrimentos. Desci para libertá-los das mãos dos egípcios, e fazê-los sair daquele paíspara uma terra boa e espaçosa,uma terra onde corre leite e mel (vv. 7-8a).

Nos vv. 7-8, Javé manifesta sua solidariedade com o povo sofrido: “Eu vi…, ouvi…, conheço…, desci…”. Javé Deus vê (cf. Gn 16,13) a miséria do povo, ouve o clamor dos filhos de Israel (v. 9); se importa e resolve descer para libertá-lo. A descida do Senhor consiste no envio de um mediador, Moisés (para outras descidas, cf. Gn11,5.7; 18,21; em Ex 19,18, Javé desce no fogo sobre o Sinai; em At 2,2-3, o Espírito Santo; em Jo 3,13 etc., o próprio Jesus).  A salvação se dá em dois tempos: libertação da escravidão e condução ao país prometido aos patriarcas, descrito de maneira mitológica, paradisíaca (“leite e mel”) e também histórica, porque seis ou sete povos já moravam lá: “lugar dos cananeus, dos hititas, dos amorreus, dos fereseus, dos heveus e dos jebuseus” (v. 8b omitido em nossa liturgia; cf. v. 17; Dt 7,1; Js 3,10).

A Nova Bíblia Pastoral (p.77) comenta: No coração da fé bíblica está a experiência da divindade sensível à injustiça e à violência, que vê, ouve, conhece os sofrimentos e torna-se presença libertadora junto aos oprimidos. Às vezes esta divindade é Elohim, o deus dos antepassados (2,23-25; 3,6), às vezes é Javé (3,7-9) e às vezes El, o Deus maior dos cananeus (cf. Gn 46,3-4; Nm 23,22; 24,8…). Essas divindades são aqui identificadas com Javé, fazendo dele o Deus do êxodo. É a perspectiva dominante após 620 a.C., quando Josias determina o culto exclusivo a Javé e proíbe as imagens e o culto a outras divindades (2Rs 23,3.25; cf. 2Cr 34,29-33)… Os profetas e Jesus resgatam o rosto libertador e sensível da divindade, promovendo a vida do seu povo (Is 1,11-17; 58,6-12; Jr 7,3-11; Os 6,6; Am 5,21-24: Mq 3,9-12; 6,6-8; Mt 9,13; 12,7; Mc 6,34; 8,2; Lc 4,18-19; Jo 10,7-15).

Na discussão sobre a ressurreição em Mc 12,26p, o próprio Jesus cita Ex 3,6, “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”, não para legitimar posses de terra, mas como prova da escritura (os adversários saduceus reconhecem apenas o Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia chamados de Torá ou Lei de Moisés), segundo o qual, “não é Deus dos mortos, mas sim de vivos”. Os falecidos não são mortos para Deus. A fé na ressurreição não adia a justiça para o além, mas inclui os mortos (as vítimas do passado) também na justiça divina, não apenas as gerações futuras. Mas esta fé só se encontra nos livros tardios do AT. Podemos imaginar que no antigo Egito, os escravos não queriam saber de uma vida após morte em que deviam servir ao farão novamente (quando um faraó morreu, escravos foram mortos para estar a seu serviço no além). Nada indica que os hebreus esperavam uma salvação (libertação) após a morte, eles queriam vida e liberdade aqui.

Nos vv. 9-12 (omitidos) Deus envia Moisés ao farão para “fazer sair do Egito os filhos de Israel”. À primeira objeção de Moisés, “quem sou eu?”, Deus respondeu, “Eu estarei contigo” (cf. Jz 6,12; Jr 1,9-19; Mt 28,20 etc.).

Moisés disse a Deus: “Sim, eu irei aos filhos de Israel e lhes direi: ‘O Deus de vossos pais enviou-me a vós’. Mas, se eles perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’ o que lhes devo responder?” (v. 13).

Moisés aceita, mas tem outra objeção que se fia em Deus; e o povo se fiará nele? Os “filhos de Israel” (o povo dos “hebreus”, cf. 1,1-7; Gn 14,13) vão querer saber qual deus o envia, dado decisivo na missão profética autêntica (cf. Dt 13; Jr 23,13), perguntarão pelo nome da divindade. A resposta vale para Moises e vale para o povo.

Deus disse a Moisés: “Eu Sou aquele que sou”. E acrescentou: “Assim responderás aos filhos de Israel:`Eu sou’ enviou-me a vós”. E Deus disse ainda a Moisés: “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó,enviou-me a vós’.Este é o meu nome para sempre,e assim serei lembrado de geração em geração (vv. 14-15).

Estes versículos estão entre os mais analisados e discutidos de todo o AT. A escrita hebraica não tem vogais, só consoantes. O nome de Deus na Bíblia hebraica é JHVH ou YHWH, são as mesmas letras em hebraico, mas nossa vocalização é duvidosa.

A ordem perpétua em v. 15: daí em diante Deus será invocado com o nome de Yhwh foi obedecida (ex. em Is 42,8; 26,8), até que em tempos posteriores se evitasse a pronúncia deste nome sagrado (cf. 2º mandamento em Ex 20,7): Lê-se Yhwh, mas fala-se Adonai (significa “Senhor”, em grego é Kýrios, cf. a invocação Kyrie na nossa liturgia). A Bíblia Pastoral e a Bíblia de Jerusalém escrevem “Javé” (pronúncia portuguesada) ou “Yahweh” (pronúncia mais correta), enquanto outras Bíblias e nossa liturgia escrevem “Senhor” (cf. aqui em v. 15).

Na Idade Média, os judeus começaram a colocar pontinhos e tracinhos para sinalizar as vogais na escrita hebraica (texto masorético), e para evitar a pronúncia desatenta do nome sagrado já indicaram as vogais de “Adonai” para as consoantes de Yhvh. Era para falar Adonai em lugar de Yhvh (Javé). Mas se alguém não presta atenção e lê as consoantes de Yhvh com as vogais de Adonai, sai o nome equivocado “Jeová”.

Nossa vocalização do nome sagrado é duvidosa, pois nos nomes compostos encontramos a formas “Yah, Yo, Yeho”. A corrente, Yahwe é uma forma factitiva do verbo hyh (ser, existir): “aquele que dá o ser, faz existir”; assim podia soar aos ouvidos hebreus.

Quanto à interpretação, o termo é explicado no v. 14, que é um antigo acréscimo da mesma tradição. Discute-se sobre o significado desta explicação: ehyehasherehyeh. Deus falando de si mesmo, só pode empregar a primeira pessoa: “Eu sou o que eu sou”. Isto significa que Deus não quer revelar o seu nome (ou melhor: não tem nome próprio, porque é o único; cf. Dt 6,4). Mas precisamente Deus dá aqui o seu nome, que segundo a concepção semita deve defini-lo de certa maneira. Contudo o hebraico pode ser também traduzido literalmente: “Eu sou aquele que sou”; e segundo as regras da sintaxe hebraica, isto corresponde a “Eu sou aquele que é”, “sou o existente”. Foi assim que compreenderam os tradutores da Bíblia grega de setenta (LXX). Deus é o único e verdadeiro existente. Isto significa que ele é transcendente e permanece um mistério para o homem. E também que ele age na história do seu povo e na história humana, a qual ele dirige para um fim. A tradução grega presta para reflexão filosófica, primeiro encontra-se na esfera do ser ou existir (cf. Sb 13,1; Jo 8,52; Ap 1,4), segundo não se define por predicados externos, mas por si mesmo; em nossa terminologia refinada diríamos: “um ser absoluto”, pois bem para os israelitas vale o sentido enunciativo, “eu sou” que se refere como explicação de um nome conhecido e se identifica com o Deus dos patriarcas. Deus “está” aqui e “estará” (cf. v. 12), mesmo invisível, para libertar e guiar o seu povo. Deus “é”, é o “Ser”, o único que existe por si mesmo, todas as outras coisas participam do ser (são), porque ele as criou. Esta passagem contém em potencias os desenvolvimentos que a sequência da revelação lhe dará (cf. Ap 1,8: “Aquele-que-é, Aquele-que-era, e Aquele-que-vem, o todo poderoso”).

No Pentateuco, várias tradições se mesclaram: Uma tradição(javista) faz o culto de Javé remontar as origens da humanidade (Gn 4,26) e utiliza este nome divino em toda história patriarcal. Numa outra tradição, o nome de Javé como o nome de Deus dos pais, foi revelado só a Moisés aqui. A tradição sacerdotal (Ex 6,2-3) concorda com ela, especificando apenas que o nome do Deus dos pais era El shaddai (cf. Gn 17,1; Ex 6,3).

Em duas listas no sul do Egito, uma do tempo de Amenófis III, outra de Ramsés II, aparecem os “Shasu-nômades de Yahu”. Não se pode localizá-los, mas deve ser na margem do império e da terra cultivável. Se Yahu é Yahwe (Javé), o seu culto vem dos nômades, e não dos agricultores. Alguns textos bíblicos permitem localizar a “pátria” de Javé no sul da Transjordânia: um dos mais antigos diz: “Javé, quando saíste de Seir, quando avançaste na planícies de Edom,… montanhas se espalharam diante de Javé, o do Sinai, diante de Javé, Deus de Israel” (Jz 5,4s; cf. Sl 68,8s.18); outro diz: “Javé veio do Sinai, alvoreceu para eles de Seir, resplandeceu do monte Farã. Dos grupos de Cades veio até eles, desde o sul até as encostas” (Dt 33,2); outro ainda: “Eloa (Deus) vem de Temã, e o Santo do monte Farã” (Hab 3,3). Estes três textos, cada um independente dos outros, indicam lugares que se encontram em Edom (=Seir) a leste e ao sul do mar Morto descendo ao golfo de Aqabá. Somando a tradição de Moisés pastoreando o rebanho do seu sogro Jetro-Raguel na terra de Madiã (v. 1; 2,16-22; cap. 18), podemos concluir que a “pátria” do culto de Javé é o sul da Transjordânia, talvez perto do atual Wadi Rum (60 km a leste de Aqabá e da divisa com a Arábia).

A Nova Bíblia Pastoral (p.78) comenta: Mas pouco se sabe, além de que o culto a Javé é anterior à existência de Israel (Gn 4,26) e que veio de fora (Jz 5,4; Dt 32,2; Hab 3,3). Fundamental é a noção da divindade como presença solidária junto aos oprimidos e injustiçados, presente na origem e na compreensão mais genuína da fé israelita. E certamente também na comunidade joanina, ao aplicar a Jesus o divino “Eu Sou” (Jo6,35.48.51; 8,12.24.28.58; 10,7.9.11.14; 11,25; 13,19; 14,6; 15,1; 18,5.6).

 

2ª Leitura: 1Cor 10,1-6.10.12

A 2ª leitura nos apresenta Paulo que se apresentou-se como exemplo no cap. anterior que termina: Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que nã aconteça que tendo proclamando a mensagem aos outros, venha eu mesmo ser reprovado” (9,27). Paulo adverte do perigo de ser rejeitado que existe; o demonstra atravésde exemplos tirados da história de Israel (vv. 1-11). As causas dessa rejeição foram o orgulho e a presunção. Que os “fortes” se acautelem contra tais vícios (cf. vv. 12s).

A Nova Bíblia Pastoral (p.1396) comenta:Com base na história de história de Israel, vários episódios do êxodo são relidos como exemplos, e atualizados para a situação da comunidade. Assim sendo, a nuvem e o mar prefiguram o batismo cristão, enquanto o maná e a água da rocha representam a eucaristia. A tradição da rocha que seguia os hebreus pelo deserto simbolizava a presença constante de Cristo que acompanhava as comunidades. Na sequência das comparações, os fatos negativos do deserto são aplicados a realidade dos coríntios, como ameaça, para que não caiam na cobiça (v. 6), na idolatria (v. 7), na impureza (v. 8), na tentação a Deus (v. 9) e na murmuração (v. 10).

A lista dos exemplos do êxodo ilustra a necessidade de perseverar até o final. Já os rabinos usavam este gênero chamado midrax. A Bíblia do Peregrino (p.2752s) comenta:

O procedimento das séries é conhecido e praticado no AT: os Salmos 78, 105 e 106, o cap. 10 de Sabedoria, a memória penitencial de Ne 9. O tema do êxodo era um dos mais explorados na tradição rabínica. Os episódios exemplares retomados são: a travessia do mar (Ex 14), o maná (Ex 16), a água da rocha (Nm 20), a covardia diante do perigo (Nm 14), o bezerro de ouro (Ex 32), a prostituição sagrada (Nm 25), as serpentes (Nm 21), a revolta (Nm 17).

O modo de tratar os episódios é esquemático, seguindo um padrão bastante livre. O princípio hermenêutico é ver os fatos e sua versão escrita como tipos ou prefigurações do futuro, que é a era final do evangelho. Ou seja, o ponto de vista é o momento presente com seus problemas e exigências.

Irmãos, não quero que ignoreis o seguinte: Os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar; todos foram batizados em Moisés, sob a nuvem e pelo mar (vv. 1-2).

Na exortação, Paulo mistura o “vós” e o “nós”: todos, não apenas os judeus, mas também os pagãos convertidos devem sentir-se em continuidade com o Israel do êxodo, “nossos pais” ou antepassados.

A Bíblia do Peregrino (p.2753) comenta: A passagem através de elementos aquáticos – entre duas muralhas de água no mar Vermelho, sob a nuvem do deserto – era uma espécie de batismo que os incorporava a Moisés. Ex 14,31 conclui: “creram no Senhor e em Moisés, seu servo” que assim se torna tipo de Cristo.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2217) comenta: Outra versão: “se batizaram” (no uso judaico o fiel baixava por si mesmo na água). Moisés é figura de Cristo. A nuvem (Ex 13,21) e a travessia do mar Vermelho (Ex 14,22) são figuras do batismo cristão. Daí a expressão: “ser batizado em Moisés”, decalcada de: “ser batizado em Cristo”.

E todos comeram do mesmo alimento espiritual, e todos beberam da mesma bebida espiritual; de fato, bebiam de um rochedo espiritual que os acompanhava  – e esse rochedo era Cristo – (vv. 3-4).

Após as figuras do batismo, Paulo menciona o maná (Ex 16,4-35) e a água jorrada do rochedo (Ex 17,5-6: Nm 20, 7-11). Comida e bebida se unem, como na eucaristia. O maná e a água da rocha eram materiais na sua essência, eram “espirituais” por sua origem milagrosa e por seu sentido profético (cf. Jo 6,22 e 7,37s), ou são chamados “espirituais” por serem figuras da Eucaristia, pela qual Cristo faz aos homens o dom do seu ser espiritual.

Paulo se inspira numa tradição rabínica segundo o qual o rochedo de Nm 20,8 “acompanhava” Israel no deserto, seguia o povo em seus deslocamentos como manancial itinerante: os rabinos a identificaram com a Lei de Moisés, que acompanhava o povo em sua história. Para Paulo, essa rocha simbolizava o Cristo preexistente, que agia na história de Israel.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2217) comenta: As figuras do AT já possuem, de certo modo, Aquele que anunciam: por isso o rochedo já era Cristo. Paulo convida os seus leitores à prudência e a modéstia: os hebreus no deserto se beneficiaram de maneira figurativa dos mesmos dons que eles: batismo e eucaristia, e nem por isso deixaram de ser rejeitados (cf. 11,32…).

No entanto, a maior parte deles desagradou a Deus, pois morreram e ficaram no deserto.  Esses fatos aconteceram para serem exemplos para nós, a fim de que não desejemos coisas más, como fizeram aqueles no deserto (vv. 5-6).

Em vez de entrar na terra prometida “ficaram” no deserto em Nm 14 “para serem exemplos (ou tipos) para nós”. Esta passagem contém uma dupla interpretação tipológica do AT. Os “fatos que aconteceram” prefiguram os aspectos do mistério cristão (vv. 1-4);os comportamentos como “desejar o mal” cf. Am 5,14; Sl 52,5), servem de exemplos que não devem ser imitados e de advertência (vv. 6-11).

A Bíblia de Jerusalém (p.2160) comenta: Paulo recorda a nuvem e a passagem do mar Vermelho (figuras do batismo), o maná e a água da rocha (figuras da eucaristia), para exortar os coríntios a prudência e a humildade: os hebreus no deserto, de certo modo, beneficiaram-se dos mesmos dons que eles; não obstante, a maioria desagradou a Deus (v. 5)…

Lit.: “ … servir como tipos”, tipos que Deus suscitou para figurar de antemão as realidades espirituais da era messiânica (“antítipos”, 1Pd 3,21, mas cf. Hb 9,24). Embora os atores sagrados não tivessem nítida consciência desse sentido “típico” (ou “alegórico”, Gl 4,24) dos Livros Santos, tal sentido é realmente bíblico, porque intencionado por Deus, autor de toda a escritura. Destinado a instrução dos cristãos, o sentido típico foi muitas vezes apontado pelos autores de NT. Paulo o incute repetidamente (vv.11 e 9,9s; Rm 4,23s;5,14; 15,4;cf. 2Tm 3,16). Estão fundados sobrea tipologia do AT escritos inteiros como o quarto Evangelho e a Epístola aos hebreus.

Não murmureis, como alguns deles murmuraram, e, por isso, foram mortos pelo anjo exterminador (v. 10).

“Murmurar” é verbo típico das reclamações dos israelitas no deserto contra sede e fome (Ex 15,24; 16,2; Nm 11,4s), contra os perigos da guerra (Nm 14,2s) etc.; assim Israel se mostra como um povo arredio que rejeita até os benefícios do seu Deus (cf. Sl 78; 106), imagem da pessoa que resiste às solicitações da graça.O caso referido se encontra em Nm 17,6-15 (praga e expiação por Aarão). O anjo “exterminador” é encarregado dos castigos divinos. Ele é mencionado em Ex 12,23, na morte dos primogênitos dos egípcios, mas não em Nm 17,6-15.

Nossa liturgia omite o v. 10 que fala da “etapa final” (cf. 1Pd 4,7; 1Jo 2,18). Estes e muitos outros fatos do AT que o povo vive é como uma representação sagrada exibida diante dos futuros leitores, que deverão sentir-se interpelados pelo drama representado.

Portanto, quem julga estar de pé tome cuidado para não cair (v. 12).

O deserto é a etapa tradicional da “prova” (Ex 16,4; 20,20; Dt8,2.16). A provação/tentação pertence a existência humana e à vida cristã: no Pai-nosso (Mt 6,13; Lc 11,4) pedimos para superá-la (Eclo 2,1-6), não eliminá-la.Já apareceram na carta as tentações concretas dos coríntios e algumas quedas (rijas, imoralidades etc.). A seguir, vai deter-se num caso particular (cap. 11 sobre problemas nas assembleias, cf. o apelo ao exame antes de receber a eucaristia em 11,30-32).

 

Evangelho:Lc 13,1-9

Neste relato próprio de Lucas, Jesus acaba de falar sobre o sentido conjuntura histórica e a urgência da conversão.

Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam (v. 1).

“Algumas pessoas trazendo notícias a Jesus”; o que lhe contam pode assinalar o significado do presente. Tal acontecimento é de outra maneira desconhecida, bem como o acidente mencionado no v. 4. Se era um acontecimento histórico, só podia ser no Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa na qual leigos podiam participar do sacrifício.

Um massacre de samaritanos aconteceu durante o sacrifício no monte Garizim pelos soldados romanos no ano 35 a.C.. Talvez Lc o tenha transferido ou confundido. Às vezes, os zelotas (rebeldes violentos como Barrabás) foram chamados de “galileus”, porque muitos destes extremistas vieram da Galileia (cf. At 5,36s). A descrição da matança, “misturando seu sangue com os dos sacrifícios”, pode designar um ataque durante o ritual ou numa procissão e,além dos homicídios, acusa uma impiedade contra as oferendas e uma profanação do templo. É um fato abominável, mas retrata bem o caráter cruel de Pilatos (descrito fora dos evangelhos pelos autores judaicos Filon e Flávio Josefo).

Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo (v. 2-3).

O ensinamento é claro: nenhuma relação direta e precisa existe entre falta e calamidade (comparar Jo 9,3); mas essa desgraça pública é um convite providencial para o arrependimento.

Os fariseus deviam ter interpretado o fato com o princípio de retribuição (nenhum castigo sem culpa, cf. Jo 9). Para Jesus não vale a aplicação mecânica do princípio de retribuição (o grande problema do livro de Jó), mas as desgraças alheias podem conservar sua força de admoestação. O que para uns é desgraça, seja para outros uma advertência.

A Bíblia do Peregrino (p.2502) comenta: Sobre a força da admoestação em cabeça alheia, cf. Ezequiel em seu julgamento comparativo: Ooliba-Jerusalém não se corrigiu, pelo contrário, “viciou-se mais que sua irmã” Oola-Samaria, quando ela sofrer o castigo exemplar, “serão admoestadas todas as mulheres”, ou seja, cidades, nações (Ez 23,11.48). Amós, por experiência própria, prega sobre admoestações vãs, (Am 4,6-13). Os livros sapienciais advertem, quem não aproveita o tempo para arrepender-se, não se livrará da desgraça (Sl 7,13; 50,22), e exortam para vigilância: “Não demores em voltar a ele nem delongues de um dia para outro” (cf. Eclo 5,5-7).

E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (vv. 4-5).

A notícia detalhada mostra a historicidade do fato, talvez a construção do aqueduto por Pilatos tenha causado a queda da torre. Lc podia ter visto nestes dois fatos um anúncio da guerra judaica que os zelotas junto com os saduceus começaram em 66 d.C., mas os romanos venceram e destruíram Jerusalém com seu Templo no ano 70 (cf. 19,41-44; 22,28-31).

E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?’ Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este ano.Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás’” (vv. 6-9).

Lucas apresenta como parábola o que nos outros evangelistas sinóticos (Mc e Mt) é a ordem de Jesus à figueira de secar, um gesto simbólico e ato de severidade (Mc 11,12-14p) situado entre a entrada em Jerusalém e a purificação do Templo. Lc preferiu esta parábola sobre a paciência. Esta parábola retoma as ameaças clássicas contra a árvore infrutífera e improdutiva.

A Bíblia do Peregrino (p.2502) comenta: O tema é também o tempo último para arrepender-se. A “figueira” pode ser símbolo de Israel (Jr 8,13; Os 9,10; Mq 7,1). “Fruto” é metáfora frequente de ação responsável e de suas consequências (Pr 1,31; 12,14; 31,31). Um dado próprio dessa parábola é a intercessão do vinhateiro a favor da figueira pedindo moratória (cf. as sucessivas intercessões de Amós, duas escutas, duas reservas: Am 7,1-9; 6,1-3). Embora Jesus introduza essa moratória, cada árvore pode esgotar seu tempo de tolerância.

“Ainda este ano”, talvez uma alusão à duração do ministério de Jesus, como se deduz do quarto evangelho.

O site da CNBB comenta: Quem vive na graça de Deus tem a vida dentro de si. Ao contrário, a paga do pecado é a morte. Esta verdade deve sempre estar presente em nossas mentes, a fim de que possamos, apesar dos nossos pecados, buscar a verdadeira vida que vem de Deus. A partir dessa consciência, devemos procurar constantemente a conversão, a busca da santidade, a coerência da nossa vida com a fé que professamos. O Evangelho de hoje nos mostra que Deus tem paciência conosco e, por meio da sua graça, está sempre contribuindo para a nossa conversão e para a nossa santificação, mas é necessário que também nós procuremos fazer a nossa parte.

 

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