25 de março de 2018 – Semana Santa – Domingo de Ramos Ano B

O Domingo de Ramos é uma festa bipolar: a alegria da acolhida do rei da paz na procissão de ramos (“Hosanna”) e depois a tristeza e violência na Paixão do rei dos judeus abandonado por todos (“Crucifica-o”).

Evangelho – Procissão: Mc 11,1-10

A entrada de Jesus em Jerusalém marca o início da Semana Santa. Como muitos outros judeus, Jesus e seus discípulos cumpriram a lei de Dt 12, que obriga judeus adultos a celebrarem a Páscoa em Jerusalém (cf. Lc 2,41s). A páscoa era a memória da libertação da escravidão no Egito (cf. Ex 12), portanto o clima era explosivo, porque os judeus almejavam uma libertação do jugo dos romanos promovida por um messias. “Messias” vem da palavra hebraica que significa “ungido” (em grego: “Cristo”), porque os reis no Antigo Oriente foram ungidos na hora da posse, simbolizando a força do Espírito divino para governar o povo (cf. 1Rs 10,1; 16,13; 1Rs 1,39). Por mil anos, os profetas e sábios alimentaram a promessa de um messias salvador, rei legitimo por ser descendente de Davi (cf. 2Sm 7; Is 7,14; 9,5s; 11,1s; 61,1; Jr 23,5s; Ez 34,23s; Mq 5,1; Zc 9,9s).

Para os judeus, o “rei Herodes” não era legítimo, não era nem judeu, mas idumeo e governava apenas com apoio dos romanos. Depois da sua morte (4. a.C.), seu filho Herodes Antipas governava a Galileia e um governador romano (Pôncio Pilatos de 26 a 36), a Judeia. Ele residia no litoral, em Cesareia marítima, mas em épocas críticas, como a festa da Páscoa, se deslocou para a fortaleza Antônia (vizinha do templo) em Jerusalém.

Quando se aproximaram de Jerusalém, na altura de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras, Jesus enviou dois discípulos, dizendo: “Ide até o povoado que está em frente, e logo que ali entrardes, encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado. Desamarrai-o e trazei-o aqui! Se alguém disser: “Por que fazeis isso?”, dizei: “O Senhor precisa dele, mas logo o mandará de volta”” (vv. 1-3).

Do monte das Oliveiras, já se tem vista panorâmica da cidade santa, cujo nome Yeru-Shalém significa “cidade da paz”. É o destino da viagem de Jesus com seus discípulos: a cidade onde se abrigam seus adversários (3,22; 7,1), que vão matá-lo (10,32; 15,41).

Jesus vai entrar em Jerusalém para visitar o templo, para nele ensinar e também purificá-lo (vv. 15-19), mas às noites não ficará, voltará para fora da cidade para Betânia (cf. vv. 11s.19s; 14,3) junto ao monte das Oliveiras (onde fica também o jardim Getsêmani, 14,32). Já no Antigo Testamento (AT), este monte é um lugar de oração (Ez 11,23; 2Sm 15,32), onde Javé Deus se revelará no dia do julgamento, rachando o monte (Zc 14,3s). O historiador contemporâneo, Flávio Josefo (37-100), menciona que, poucos anos depois da morte de Jesus, um pretendente de messias vindo do Egito queria se revelar no monte da Oliveiras e fazer cair os muros da cidade, mas foi expulso pelos soldados romanos. Este episódio ilustra a expectativa do povo que o messias poderia vir do deserto e se revelar neste monte.

Betfagé e Betânia são dois povoados perto do monte das Oliveiras, para onde Jesus envia dois dos discípulos (cf. 6,6; 14,13; Lc 10,1). Em Betânia situa a casa de Maria, Marta e Lázaro (Jo 11,1; 12,1; cf. Lc 10,38s) e acontecerá a unção antecipada para o funeral (Mc 14,3-9p; Jo 12,1-8; omitida por Lc).

Jesus pretende entrar na cidade montado num “jumentinho que nunca foi montado”. Um animal nunca usado é apto para uso religioso (só vacas novas, sobre as quais não tinha ainda posto canga, podiam puxar o carro da arca da aliança em 1Sm 6,7; cf. Dt 21,3; Nm 19,2; Lc 23,53).

O jumento pode-se comparar hoje a um carro popular ou uma moto. Jesus não vai entrar com um cavalo de guerra nem num carrão de luxo. O fato de pedir emprestado este jumento mostra a carência do grupo dos discípulos que caminhava a pé. Mas Jesus sabe providenciar mesmo assim, tem simpatizantes além do grupo dos discípulos. Em contraste à pobreza, o título “o Senhor” revela a dignidade (divindade) de Jesus; claro que não iria roubar, mas devolver o animal.

Eles foram e encontraram um jumentinho amarrado junto de uma porta, do lado de fora, na rua, e o desamarraram. Alguns dos que estavam ali disseram: “O que estais fazendo, desamarrando este jumentinho?” Os discípulos responderam como Jesus havia dito, e eles permitiram. Trouxeram então o jumentinho a Jesus, colocaram sobre ele seus mantos, e Jesus montou (vv. 4-7).

A ordem misteriosa de Jesus (cf. o paralelo 14,12-16 antes da ceia) entende-se aqui a partir de dois trechos do AT. Na benção a Judá (tribo de Davi), de quem “o cetro não se afastará”, falou-se de um “jumentinho amarrado” (Gn 49,10s). E o profeta Zacarias anunciou a Jerusalém a chegada do messias nestes termos: “Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumentinho, ele eliminará os carros … e cavalos … e arcos de guerra. Ele anunciará a paz ás nações” (Zc 9,9s, citado por Mt 21,5 e Jo 12,15).

Sobre o animal trazido a Jesus, os (dois?) discípulos “colocaram … seus mantos” como enfeite; esta cena e a próxima lembram a entronização do rei no antigo Israel (1Rs 1,38-40; 2Rs 9,13).

Muitos estenderam seus mantos pelo caminho, outros espalharam ramos que haviam apanhado nos campos. Os que iam na frente e os que vinham atrás gritavam: “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos céus!” (vv. 8-10).

Agora entra a multidão dos peregrinos que acolhe Jesus fora da cidade: “Muitos estenderam seus mantos pelo caminho” (nos degraus, cf. 2Rs 9,13), “outros espalharam ramos” (cf. Sl 118,27). O destino da procissão é o templo (v. 11): “Formai a procissão com ramos até aos ângulos do altar” (Sl 118,27).

A aclamação do povo cita a liturgia de Sl 118,25-26: “Hosana” é uma das poucas palavras hebraicas que se usa ainda na nossa liturgia de hoje (além de “Amém”), significa “venha em nosso auxílio” ou “dê a nossa salvação”. Esta aclamação era comum nas festas judaicas, sobretudo na das Tendas (os peregrinos rezavam o Hallel, os Salmos 113-118), mas também na passagem de reis como grito por “socorro” (2Sm 14,4; 2Rs 6,26).

Mc não diz diretamente que Jesus é proclamado “messias/rei” (cf. Mt 21,9; Lc 19,28; Jo 12,13), mas não deixa dúvida, porque a multidão bendiz o “reino” que vem, o reino de “Davi”. Já no início da subida a Jerusalém, em Jericó, o cego Bartimeu havia proclamado Jesus “filho de Davi” (10,47s). Mas Jerusalém vai se mostrar hostil, dentro da cidade e através de seus dirigentes; ao final, o título da cruz será: “o rei dos judeus” (15,26). Só na cruz se revela a realeza verdadeira de Jesus (segredo messiânico em Mc).

Esta entrada de Jesus lembra a unção/posse de Salomão que entrou em Jerusalém montado numa mula com júbilo do povo apesar dos seus adversários (1Rs 1,38-40). Além da simplicidade (jumento) sinaliza a legitimidade (filho de Davi) e a paz que Jesus quer trazer (cf. o significado dos nomes da cidade e de Salomão, e a profecia de Zc 9,9s)

1ª Leitura: Is 50,4-9a

O texto da leitura de hoje é tirado do Segundo Isaías (“Deutero-Isaías”, caps. 40-55), é o 3º de quatro cantos (poemas) do “Servo” de Javé (Deus). Enquanto o 1º canto apresentou a missão pacífica do servo (42,1-4; leitura da festa do Batismo do Senhor) e o 2º a reafirmou diante do insucesso (49,1-6), o 3º fala da experiência do sofrimento injusto. Todos os quatro cantos serão lidos nesta semana (2ª, 3ª, 4ª e 6ª feira Santa).

Quem está a falar no 3º canto parece o próprio servo, embora não seja aqui nomeado, mas é o que se deduz do contexto (cf. v. 10). Não se chama profeta, mas narra sua vocação como de um profeta (cf. 49,1s). Ele inicia quatro vezes com “o Senhor Deus” (lit. “o Senhor Javé”; vv. 4.5.7.9; cf. 40,10; 48,16; 49,14.22; 51,22; 52,4): ao ouvir a palavra (v. 4, cf. Jr 1,2.7.9; 15,16.19; 17,15; 20,8s), ao sofrer na missão (vv. 5-6; cf. Jr 1,8.17; 10,17s; 17,17s; 18,18; 20,7-10) e para confiar no Senhor (vv. 7-9; cf. Jr 15,20s; 20,11-13).

Pelo gênero literário, é um salmo de confiança com confissão, e a mesmo tempo, uma alegação de defesa pelo próprio réu num tribunal. Suas palavras se dirigem aos homens, não a Deus.

O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo (v. 4).

O autor descreve sua vocação profética. Só pode falar o que ele ouve de Javé (cf. Jo 7,16; 14,24). Ele é um “discípulo” (v. 4; cf. 54,13), talvez saído de uma escola que remonta ao primeiro Isaias (cf. 8,16)? Nas escolas do Oriente, o método didático no primário era e, às vezes, ainda é: o mestre fala, e os discípulos repetem suas palavras.

O profeta está com uma “língua adestrada”, porque o “Senhor Deus” (lit. Senhor Javé, nos vv. 4.5.7.9) “desperta cada manhã e me excita o ouvido” (v. 4). A primeira impressão do dia é a palavra de Deus que o orienta e envia (cf. a oração pela manhã em Sl 5,4; 57,9; 88,14; 90,14; Mc 1,35). Sua missão tem um alcance mais restrito do que 42,1.4.6; 49,6, mas uma nova qualidade: responder às angustias dos fracos e abatidos (cf. o início do Segundo Isaias em 40,1: “Consolai, consolai meu povo”). O povo no exílio está cansado, abatido, deprimido, fatigado, mas o profeta quer dar novo ânimo com sua palavra (cf. 40,27-31; Mt 9,36; 11,28-30).

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (v. 5).

  1. 5a repete que Deus lhe “abriu os ouvidos” (metáfora na Babilônia para uma divina revelação verbal a um ser humano). Para isso, o profeta não resiste o que o Senhor Javé pede também a outro profeta no exílio: “Não seja rebelde como esta casa de rebeldes” (Ez 2,8; 3,24-27; 24,27; 33,22). Ele não resiste nem volta atrás, nem faz objeções como Moisés e Jeremias (cf. Ex 3,11; 4,10; Jr 1,6). Nas confissões de Jr (Jr 15,14s; 20,8b-10), o profeta parece deprimido entre o recado de Deus e as hostilidades dos homens, mas a palavra de Javé alimenta seu coração todo dia. Deutero-Isaías já aceita este destino de profeta como intrínseca. Como depois Jesus, ele se identifica com a vontade de Deus (cf. Jo 4,34; Mc 14,36p).

Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (v. 6).

O profeta não recua diante das dificuldades e ataques de adversários. Além de agressões físicas, sofre ações para envergonhar: cusparadas (Jó 30,10), bofetões, tapas no rosto, eram considerados uma vergonha (cf. Jó 16,10; Mt 5,39), principalmente quando se bate numa autoridade, por ex. num profeta (1Rs 22,24), num juiz (Mq 4,14; Lc 18,5) ou num rei (cf. Jo 18,22) “Ofereci minhas costas para me baterem, e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas” (v. 6). A barba era símbolo da força e honra masculina. Só escravos estavam sem barba. Existem fotos em que soldados nazistas arrancaram a barba de judeus idosos. Os evangelistas veem o cumprimento destas palavras proféticas na paixão de Cristo (cf. Mc 10,34; 15,19; Mt 26,67; 27,26-30; 27,30; Lc 22,63s).

Não se sabe o porquê destas agressões. O profeta apanhou dos seus conterrâneos, porque não escondeu que a culpa do exílio era do povo de Israel (42,18-25; 43,22-28; 50,1; etc.)? Ou ficaram cansados e enfurecidos por causa das suas promessas de um novo êxodo maravilhoso enquanto, na vida real, nada mudou (ainda). Maltrataram este “falso profeta” (cf. Jr 29,8ss) ou o denunciaram diante das autoridades babilônicas?

Mas o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções? Vejamos. Quem é meu adversário? Aproxime-se. Sim, o Senhor Deus é meu Auxiliador; quem é que me vai condenar? (vv. 7-9a).

O profeta-servo torna se firma na sua confiança, faz seu rosto como pedra (cf. Jr 1,18s; Ez 3,8s; Jó 28,9; cf. Lc 9,51). É para esconder a dor ou esconder sua ira? É a sua resistência aos adversários, porque ele não recorre à violência (42,2s) nem foge dos agressores. Ele pode ter medo dos inimigos, mas aplica a si mesmo o que falou aos exilados desanimados: “Não temas” (cf. 41,10-13), e confia na sua defesa pelo Senhor. Como ele é inocente e cumpre o que Deus ordenou, o próprio Deus fará sua defesa. O profeta se declara e desafia como num tribunal (cf. cf. 41,1-7 e o processo em Dt 25,1-3) em que os adversários acham que já ganharam. A não-resistência pode ser tomada como confissão de culpa, dando razão ao adversário.

“Mas o Senhor Javé é meu auxiliador” (vv. 7.9). Mas quem acusará, se seu advogado é o próprio Deus? (cf. a função do Espírito-paráclito em Jo 16,8-11; Mt 10,20, e a grande confiança de Paulo em Rm 8,31-34). Deus demonstrará a inocência do acusado, conseguirá sua absolvição, enquanto os adversários serão apanhados na mesma armadilha que lhe tinham preparado (cf. v. 11). “Certamente todos eles se gastarão como uma veste, a traça os devorará” (v. 9b, omitido pela liturgia de hoje; cf. 51,8).

Neste terceiro canto, o Servo de Javé se revela como indivíduo (não como povo, cf. 41,8; 42,19; 43,10; 44,1s; 45,21; 48,20; 49,3?). É um profeta que expressa como recebe a palavra de Deus, quais sofrimentos lhe surgem no seu ofício e como os suporta. Está perto das confissões de Jeremias e da vocação de Ez 2, mas tem seu perfil próprio. Suas palavras aqui se relacionam a outros trechos de Deutero-Isaías (cf. 40,27-31; 41,8-13; 51,8) e não deixam dúvidas: o Servo é o próprio profeta: Deutero-Isaías. Sua solicitude pastoral para com os fracos, cansados e abatidos prefigura Jesus, que os convida como bom pastor, manso e humilde (cf. Mt 11,28; Lc 13,34; 19,9s; cf. Is também Is 40,27-31; 46,1-4; 55,1ss;); sua recusa de violência reencontra-se na ética de Jesus (Mt 5,39b). Mas o servo-profeta espera ser reconhecido, justificado no tribunal. No tempo do AT, moralidade e legalidade ainda eram uma coisa só. Ainda não havia a crença numa possível justificação após a morte. Mas os cantos do servo, na sequência de 50,4-9 e 52,13-53,12 representam um salto na fé. O servo renuncia a vingar-se e espera que sua honra seja recuperada, que injustiça não tenha a última palavra e a violência seja superada (cf. CF 2018). Como, onde e quando o servo será justificado não se fala ainda. A comunidade falará depois na liturgia funeral em 52,13-55,12 (leitura de Sexta-feira Santa).

 

2ª Leitura: Fl 2,6-11

A carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo na prisão de Éfeso entre os anos de 54 e 57. Apesar dos sofrimentos, a carta demonstra que o evangelho é boa notícia. A comunidade de Filipos era a primeira igreja que Paulo fundou na Europa (At 16,11-40) e a única da qual aceitou donativos para suprir suas privações (4,10-20).

Paulo convida a comunidade dos filipenses a evitar as divisões causadas pelo espírito de “competição” (v. 3), pelo desejo de receber elogios e pela busca dos próprios interesses. A comunidade deve zelar pela harmonia interna e, para isso, é necessário que haja humildade, “cada um considerando os outros superiores a si” (v. 3), e que o empenho tenha sempre em vista o bem comum (v. 4).

Paulo sabe por experiência quão facilmente nascem rixas e conflitos nas comunidades (cf. 1Cor). Ele percebeu sinais disso em Filipos (1,27; 2,14; 4,2) e por isso exorta os seus correspondentes à unidade e à concórdia. A unidade só se realizará por uma vida de humildade, abnegação e serviço de que o próprio Cristo deu o exemplo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (v. 5).

Citando um hino conhecido, Paulo apresenta em Cristo o modelo da humildade. Embora tivesse a “mesma condição de Deus”, Jesus se apresentou entre os homens como simples homem. E mais: abriu mão de qualquer privilégio, tornando-se apenas homem que obedece a Deus e serve aos homens. Não bastasse isso, Jesus serviu até o fim, perdendo a honra ao morrer na cruz, como se fosse criminoso. Por isso Deus o ressuscitou e o colocou no posto mais elevado que possa existir, como Senhor do universo e da história. Os cristãos são convidados a fazer o mesmo: abrir mão de todo e qualquer privilégio, até mesmo da boa fama, para pôr-se a serviço dos outros, até o fim (cf. o lema da CF 2015, inspirada em Mc 10,45).

O esquema “humilhação”/”exaltação” pode-se detectar já em Pr 15,33; 18,12; Sl 113,7s; cf. 1Sm 2; Sl 22; 118; Is 53. As diversas etapas do ministério de Cristo estão assim marcadas, cada uma numa estrofe: 1. a descida (vv. 6-8): a partir da preexistência divina, o aniquilamento da encarnação, o aniquilamento ulterior da morte, 2. a subida (vv. 9-11): a glorificação celestial, a adoração do universo, o título novo de “Senhor”.

Trata-se do Cristo histórico, Deus e homem, na unidade da sua personalidade concreta, que Paulo jamais divide, se bem que distinga seus diversos estados de existência (cf. Cl 1,13s).

(Jesus Cristo), existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz (vv. 6-8).

A frase anterior terminou com “Cristo Jesus” (v, 5) que nosso liturgia transferiu para iniciar o v. 6. “Existindo em condição (lit. forma) divina” (v. 6a). Aqui e no v. 7, “forma” exprime mais do que uma aparência; é figura visível manifestando o ser profundo, ou, então, por alusão a Gn 1,27; 5,1: a imagem de Deus, o próprio ser de Deus em Cristo. A tradução “condição/forma” permite repetir a palavra em v. 7 (“condição/forma de escravo”). Cristo, sendo Deus, tinha por direito todas as prerrogativas divinas.

Considerando que a Carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo entre 56 e 64, temos aqui é o testemunho mais antigo da preexistência de Cristo, 20 a 40 anos antes de Cl 1; Hb 1 e Jo 1. A descida e a ascensão de Cristo neste hino antecipam a cristologia joanina (cf. Jo 1,1.14; 3,13s; 12,32; 13,1 etc.)

“Não fez do ser igual a Deus uma usurpação” (v. 6b; lit. “não considerou o estado de igualdade com Deus como uma presa”, que não se larga, se deve agarrar). Não se trata da igualdade de natureza, suposta pela “condição divina” e da qual Cristo não poderia despojar-se, mas de uma igualdade de tratamento, de dignidade manifesta e reconhecida, que Jesus poderia ter reivindicado mesmo na sua existência humana. Pode-se pensar na atitude oposta de Adão e Eva (Gn 3,5.22).

Duas explicações se confrontam. Para uns, a condição divina é o estado do Cristo antes de sua encarnação, e esta é a primeira forma do rebaixamento de Cristo. Neste curso, a “presa” (a igualdade com Deus) deve ser conservada e defendida, não conquistada. A palavra grega parece sugerir antes uma presa da qual alguém quer se apropriar. Neste caso, o reflexo do ser de Deus (imagem de Deus) se manifesta no comportamento terrestre de Cristo. Haveria aí uma alusão a Adão que procurou fazer-se igual a Deus (Gn 3,5,22): Cristo escolheu na terra a humildade e a obediência em vez do orgulho e da revolta. Este paralelo antitético entre Adão e Cristo, iniciado aqui, será novamente tratado por Paulo em perspectivas mais amplas (Rm 5,14; 1Cor 15,45-47). Como ilustração por contraste podem-se ver as pretensões divinas do rei do Tiro (Ez 28,6.9), do rei da Babilônia (Is 14,13s) e o convite irônico a Jó (Jó 40,7-14).

“Mas esvaziou-se a si mesmo” (v. 7a). Do verbo grego que significa “esvaziar” veio o termo Kênosis (oposto do pleroma, plenitude divina, cf. Cl 1,19; 2,9; Ef 1,23; 4,10; Jo 1,16). Trata-se menos da encarnação do que do seu modo. Aquilo de que Cristo feito homem se despojou livremente não é a natureza divina, mas a glória que por direito ela lhe conferia, glória que ele possuía na sua preexistência (cf. Jo 17,5) e que deveria normalmente resplandecer sobre a sua humanidade (cf. a transfiguração, Mt 17,1-8p). Ele preferiu privar-se dela para recebê-la apenas do Pai (cf. Jo 8,50.54), como preço do seu sacrifício (vv. 9-11).

“Assumindo a condição de escravo” (v. 7b). A condição/forma de escravo/servo é simplesmente a condição humana submetida a Deus. O termo “servo” opõe-se ao título de “senhor” (v. 11; cf. Gl 4,1; Cl 3,22s). Cristo feito homem adotou um caminho de submissão e de humilde obediência (v. 8). É provável que Paulo esteja pensando aí no “servo de Javé” de Is 52,13-53,12 (cf. Is 42,1).

“Tornando-se igual aos homens” (v. 7c), portanto, não apenas um verdadeiro homem, mas um homem como os outros, partilhando de todas as fraquezas da condição humana, exceto o pecado (Hb 2,17).

“Humilhou-se a si mesmo” (v. 8). Se a encarnação é um primeiro aspecto da kênosis, eis o segundo. Como o Servo de Is 53, Cristo escolheu o rebaixamento por obediência até a morrer (cf. Is 53,8.12), “e morte na cruz”, reservada aos malfeitores (Hb 12,2). É o escândalo da cruz, um dos pontos fundamentais da pregação de Paulo (1Cor 1,18-25; 2,1s; Gl 6,14).

Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai (vv. 9-11).

“Por isso, Deus o exaltou” (v. 9a; lit.: superexaltou). Foi exaltado (cf. Is 52,13; 53,10-12) pela ressurreição e ascensão, obra por excelência do poder de Deus (cf. 1Ts 1,10; Rm 1,4)

“Lhe deu o Nome” (v. 9b). Conferir um nome é não somente atribuir um título, mas uma dignidade autêntica (cf. Ef 1,21; Hb 1,4). Aqui Paulo pensa no nome de “Senhor” (cf. v. 11; At 2,21.36; Hb 1,4) que no AT grego é a palavra empregada para o nome impronunciável de Deus (Yhwh, portuguesado: “Javé”, Ex 3,14s). Assim o senhorio de Deus se revela em Jesus na sua extrema humilhação.

O Servo é exaltado acima do universo inteiro a fim de que o gesto de adoração e homenagem devida a Deus somente doravante dirija-se também a Jesus “Senhor” em que Deus se revela e age (cf. Is 45,23; Fl 3,21; Ef 1,20-23; 3,14; 4,10; Cl 1,18-20; Rm 14,11; 1Cor 24-28; Mt 28,9.17; Lc 24,51-52). “Nos céus, na terra e abaixo da terra” é a tríplice divisão do mundo criado (cf. Ap 5,3.13). Debaixo da terra visa aos habitantes da morada dos mortos, de preferência aos demônios (no AT era opinião comum que os mortos não louvem a Deus, cf. Is 38,18s; Sl 30,10; 88,11-13, aqui está mais em sintonia o Sl 22,30).

Chamar Jesus de Senhor no sentido de Javé, não é blasfêmia nem tira a glória do Pai, ao contrário, é glória mútua. O Pai enviou o Filho e o glorificou, ressuscitando-o e colocando a sua direita (cf. Sl 110). O Filho glorificou o Pai nas suas obras (milagres) e mais ainda, na sua obediência até a morte na cruz (cf. Hb 5,8; Jo 8,53; 10,30-36; 12,23.28; 17,1.22.24).

 

Evangelho: Mc 14,1-15,47; aqui a versão breve: Mc 15,1-39

A versão mais breve começa com o interrogatório por Pilatos, omitindo acontecimentos anteriores: a unção de Jesus por uma mulher em Betânia (14,3-9; Jo 12,3 a identifica com Maria, irmã de Marta e Lázaro), a última ceia (14,12-31), a oração no jardim Getsêmani (14,32-42), a traição de Judas e a prisão de Jesus (14,43-52), o processo diante do Sinédrio e a negação de Pedro. No final, a versão mais breve omite o sepultamento (15,40-47).

Antes do interrogatório pelo governador romano Pôncio Pilatos houve um processo judaico, uma reunião do sinédrio (supremo conselho e tribunal) durante a noite, muito incomum. Seus integrantes, “os sumos sacerdotes, com os anciãos e os mestres da Lei” (14,53) queriam evitar um tumulto entre o povo durante a páscoa e mandaram prender Jesus durante a noite. Na festa da Páscoa, o povo judeu comemorava a libertação da opressão no Egito (poder estrangeiro e opressor, como era Roma na época), por isso o romanos estavam em alerta e o governador romano se fazia presente em Jerusalém (nos outros tempos, ele residia no litoral em Cesareia).

Falsas testemunhas acusaram Jesus, mas os testemunhos deles eram incongruentes (14,53-59). Como Jesus “nada respondeu” (14,61), o sumo sacerdote, Caifás (Mc não menciona o nome dele, cf. Lc 3,2; Mt 26,2.57; Jo 11,49; 18,13-28), perguntou sobre a identidade de Jesus, se ele era o messias. Jesus não negou (Pedro, sim), dizendo: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (14,62; cf. 13,26; Dn 7,13s; Sl 110,1). Caifás entendeu isso como blasfêmia e “todos os julgaram réu de morte” (14,64). A reação de alguns, “cobrir-lhe o rosto, esbofeteá-lo e a dizer: ‘Faça uma profecia’” (14,65) revela que a condenação talvez tenha se baseada na lei contra falsos profetas (Dt 13).

Logo pela manhã, os sumos sacerdotes, com os anciãos, os mestres da Lei e todo o Sinédrio, reuniram-se e tomaram uma decisão. Levaram Jesus amarrado e o entregaram a Pilatos. E Pilatos o interrogou: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “Tu o dizes.” E os sumos sacerdotes faziam muitas acusações contra Jesus. Pilatos o interrogou novamente: “Nada tens a responder? Vê de quanta coisa te acusam!” Mas Jesus não respondeu mais nada, de modo que Pilatos ficou admirado (vv. 1-5).

Os chefes dos judeus tinham condenado Jesus, mas não podiam executar a pena de morte, porque os romanos ocupavam o país e reservavam para si o direito da sentença à morte (Jo 18,31). Por isso, “logo pela manhã”, os conselheiros tinham que levar Jesus ao governador romano, Pilatos, e mudar a acusação religiosa (falso profeta, blasfêmia) em assunto político: “rei dos judeus” (v. 2; cf. v. 26), quer dizer, alguém contra Roma que questiona o poder de César (representado na pessoa de Pilatos), porque eram os romanos que governavam a Judeia. Poderia ser um terrorista, que luta numa guerrilha como Davi pela libertação do poder estrangeiro. Na época, havia várias insurreições e revoltas contra Roma (e seus tributos), lideradas por pretendentes de messias (At 5,35s). Nesta linha, “os sumos sacerdotes faziam muitas acusações contra Jesus” (cf. Lc 23,2-14; Jo 18,29-19,15).

A resposta evasiva de Jesus (“Tu o dizes”) não é fuga, mas postura isenta e crítica diante de um processo injusta cuja sentença já estava dada. Outra vez, “Jesus não respondeu mais nada” (v. 5). Isto lembra a profecia do Servo de Javé em Is 53,7: “como um cordeiro conduzido ao matadouro … ele não abriu a boca” (cf. Jr 11,19). Este Servo de Deus serviu de modelo para os cristãos entenderem o sofrimento do messias (cf. Mc 1,11; 15,28 citam Is 42,1; 53,12; e Mt 11,17; 12,17; 26,28 citam Is 53,4; 42,1-4; 53,12; Jo 12,38 cita Is 53,1; At 8,32s cita Is 53,7-8).

Por ocasião da Páscoa, Pilatos soltava o prisioneiro que eles pedissem. Havia então um preso, chamado Barrabás, entre os bandidos, que, numa revolta, tinha cometido um assassinato. A multidão subiu a Pilatos e começou a pedir que ele fizesse como era costume. Pilatos perguntou: “Vós quereis que eu solte o rei dos judeus?” Ele bem sabia que os sumos sacerdotes haviam entregado Jesus por inveja. Porém, os sumos sacerdotes instigaram a multidão para que Pilatos lhes soltasse Barrabás. Pilatos perguntou de novo: “Que quereis então que eu faça com o rei dos Judeus?” Mas eles tornaram a gritar: “Crucifica-o!” Pilatos perguntou: “Mas, que mal ele fez?” Eles, porém, gritaram com mais força: “Crucifica-o!” (vv. 6-14).

Os evangelistas apresentam Pilatos como fraco, mas segundo relatos fora da Bíblia (Filon, Flávio Josefo), era um militar cruel que odiava os judeus (cf. Lc 13,1). Ele percebeu que Jesus não representava um perigo para Roma, “bem sabia que os sumos sacerdotes haviam entregado Jesus por inveja.” O costume de soltar um preso na ocasião da festa poderia servir para soltar Jesus. Mas a multidão instigada pelos sumos sacerdotes pediu a soltura de Barrabás (aramaico “filho do pai”) que “numa revolta, tinha cometido um assassinato”. Era um dos zelotas ou sicários, grupos terroristas da luta armada contra Roma. Pilatos pensou que o povo ia soltar Jesus, mas se enganou. A multidão se volta contra Jesus (única vez em Mc; cf. Jr 26,8; Nm 14,10). O povo corrompido escolhe a violência, não a paz. Impressionante, como a popularidade de Jesus despencou em poucos dias, de “Hosana” (11,9s) a “Crucifica-o!” (15,13s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2443) comenta: O rei humilde a pacífico (Zc 9,9-10) que dá a vida (Mc 5,37-43) é contraposto a um homicida. Marcos quer indicar responsabilidades. Os judeus o entregaram por inveja do seu êxito, de sua influência sobre o povo, talvez de seus milagres. Mas, se a acusação não tem fundamento, Pilatos é culpado de condenar um inocente. Ambos são culpados, pecadores, assim Jesus o predizia: será entregue em poder dos pecadores” (14,41).

Pedindo a soltura do terrorista, o povo manipulado pelos sumos sacerdotes arriscou suas boas relações com Roma, um presságio do que aconteceria no ano 66 d.C., quando os sumos sacerdotes se aliariam aos zelotas, aproveitando um vácuo no poder romano e provocando a guerra Judaica. Mas o resultado era a destruição de Jerusalém e do templo em 70 d.C. O evangelista Mc escreve nesta época e vê nisso um cumprimento da profecia de Jesus (cf. Mc 13).

Pilatos, querendo satisfazer a multidão, soltou Barrabás, mandou flagelar Jesus e o entregou para ser crucificado. Teceram uma coroa de espinhos e a puseram em sua cabeça. Então os soldados o levaram para dentro do palácio, isto é, o pretório, e convocaram toda a tropa. Vestiram Jesus com um manto vermelho, teceram uma coroa de espinhos e a puseram em sua cabeça. E começaram a saudá-lo: “Salve, rei dos judeus!” Batiam-lhe na cabeça com uma vara. Cuspiam nele e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante dele. Depois de zombarem de Jesus, tiraram-lhe o manto vermelho, vestiram-no de novo com suas próprias roupas e o levaram para fora, a fim de crucificá-lo (vv. 15-20a).

A pena da crucificação tinha sido inventada pelos persas e no Império Romano era aplicada aos escravos e subversivos. Costumava ser acompanhada por uma flagelação e maus tratos de soldados que levaram Jesus “para dentro do palácio”. O processo havia acontecido fora, porque os judeus não entravam nas casas de pagãos (Jo 18,28; cf. Mt 8,8p; At 11,2s). Os soldados se divertiram fazendo de Jesus uma caricatura de rei com “manto vermelho, … coroa de espinhos … começaram a saudá-lo: ‘Salve, rei dos judeus!’ … e prostravam-se diante dele”. Um destes zombadores, porém, iria se converter em v. 39.

Levaram Jesus para o lugar chamado Gólgota. Os soldados obrigaram um certo Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo, que voltava do campo, a carregar a cruz. Levaram Jesus para o lugar chamado Gólgota, que quer dizer “Calvário”. Deram-lhe vinho misturado com mirra, mas ele não o tomou. Então o crucificaram e repartiram as suas roupas, tirando a sorte, para ver que parte caberia a cada um (vv. 20b-24).

Na época, o morro de Gólgota ficava “fora” dos muros da cidade (cf. Mt 21,39; At 7,58; Hb 13,12; cf. Lv 16,27; 24,14; Nm 15,35s). O condenado costumava carregar a parte horizontal da cruz (o poste vertical já estava no lugar). Para ajudar Jesus, fragilizado pela tortura anterior, “os soldados obrigaram um certo Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo”. Cirene é uma cidade no litoral da atual Líbia. Havia uma sinagoga dos cireneus em Jerusalém (At 6,9). Simão, então, era um judeu helenista que chegou para festa da páscoa ou já estava morando em Jerusalém (trabalhando no campo?). O evangelista menciona os filhos dele (os outros evangelistas não), porquê? Mc os deve ter conhecido, Simão deve ter se convertido e fazia parte da comunidade cristã (do círculo aberto de Estêvão, cf. At 11,20; o Rufus de Rm 16,13 é o filho dele? Simão permaneceu como testemunha importante, o primeiro discípulo que carregou a cruz (cf. 8,34); seus filhos ainda estavam vivos quando Mc escreveu.

Aos condenados costumava-se oferecer “vinho misturado com mirra” para anestesiar a dor (cf. Pr 31,6), mas Jesus queria morrer consciente. No v. 36, outra vez oferece-se bebida a Jesus, um indício de que antes de Mc já havia dois ou mais relatos da paixão que foram unidos (um do cireneu, outro com motivos da Escritura). Os soldados podiam ficar com os pertences do réu, então “repartiram as suas roupas, tirando a sorte”, o que lembra Sl 22,19. Este Salmo serviu de modelo para descrever o sofrimento do justo Jesus, já antes de Mc.

Eram nove horas da manhã quando o crucificaram. E ali estava uma inscrição com o motivo de sua condenação: “O Rei dos Judeus”. Com Jesus foram crucificados dois ladrões, um à direita e outro à esquerda. (Assim se cumpriu a Palavra da Escritura: “Ele foi contado entre os malfeitores”) (vv. 25-28).

Só em Mc faz “nove horas da manhã” (lit. a terceira hora) quando crucificaram Jesus (Mt e Lc não mencionam esta hora). Contando das nove da manhã até três da tarde (v. 34), são seis horas que Jesus agonizava na cruz. Em Jo que tem uma cronologia diferente, era meio dia quando Jesus foi condenado (19,14).

O título (“inscrição”) mostra o “motivo da sua condenação” (lit. sua culpa); “O rei dos judeus” (v. 26; Lc omite; Mt e Jo acrescentam o nome Jesus; em Jo 19,19s, o título foi escrito nas três línguas da região). Normalmente uma placa com a inscrição era colocada no pé da cruz ou pendurada no pescoço do réu já no caminho para cruz. Apenas Mt destaca que foi colocada “acima da cabeça de Jesus” (Mt 27,26).

Os “dois ladrões” podiam ser zelotas, companheiros de Barrabás, aqui como escolta grotesca do rei Jesus. O v. 28 (citando Is 53,12) falta nos manuscritos mais antigos; é considerado uma adição posterior ao texto, importando Lc 22,37.

Os que por ali passavam o insultavam, balançando a cabeça e dizendo: “Ah! Tu que destróis o Templo e o reconstróis em três dias, salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!” Do mesmo modo, os sumos sacerdotes, com os mestres da Lei, zombavam entre si, dizendo: “A outros salvou, a si mesmo não pode salvar! O Messias, o rei de Israel, que desça agora da cruz, para que vejamos e acreditemos!” Os que foram crucificados com ele também o insultavam (vv. 29-32).

Os insultos se inspiram no Sl 22,8: “Todos os que me veem, caçoam de mim, abrem a boca e balançam a cabeça” (Sl 22,8; cf. Lm 2,15; 109,25; Is 37,22; Jr 18,16). As palavras de Jesus sobre o templo, que já foram citados na interrogação do sinédrio (14,28p; Jo 2,21s explica; cf. At 6,14), são motivo da zombaria.

“Do mesmo modo, os sumos sacerdotes, com os mestres da Lei”, que estão lá também, reconhecem que Jesus “a outros salvou” (através de milagres, cf. 3,4; 5,23.28.34; 6,56), mas repetem o apelo irônico do povo “salva-te a ti mesmo” (cf. Lc 4,23; talvez alusão ao nome de Jesus = o Senhor salva), “desça da cruz” onde estava amarrado ou pregado (em Jo 20,25, Tomé fala das marcas dos pregos/cravos).

Assim, os representantes do judaísmo questionam “o Messias, o rei de Israel” (título correto, dito da dinastia de Davi, 2Sm 5,12; 12,7; “rei dos judeus” é expressão pagão), como tal Jesus se declarou no sinédrio (14,61s). Eles exigem um sinal para ver e crer. Já exigiram um sinal do céu para pô-lo a prova em 8,11-13 (cf. Mt 16,1-4p). Em Sb 2,17s, os ímpios dizem: “Vejamos se suas palavras são verdadeiras, experimentemos o que será do seu fim. Pois se o justo é filho de Deus, Ele o assistirá e o libertará das mãos dos seus adversários” (cf. Sl 22,9; 31,12; 69,10; Mt 26,40.43).

O insulto vem também dos dois “que foram crucificados com ele”. Só em Lc 23,39-43, um deles se arrepende e sua fé é acolhida por Jesus (Lc 23,40-43).

Quando chegou o meio-dia, houve escuridão sobre toda a terra, até as três horas da tarde. Pelas três da tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eli, Eli, lamá sabactâni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (vv. 33-34).

A contagem das horas é motivo apocalíptico. A escuridão pode simbolizar a tristeza (de Deus), ignorância, ira, abandono (cf. o fim em 13,24s; o julgamento em Am 5,18-20 e Jr 15,9).

Jesus grita o Sl 22,2 em aramaico (cf. 5,41; 14,36; Mt 27,46 em parte hebraico). O salmo expressa o sofrimento de um justo, que se sente abandonado, “rodeado por um bando de malfeitores…” (Sl 22,17). O autor do Sl verbaliza o seu sentimento, mas não desiste da fé e, nos versículos finais, agradece porque foi salvo e louva a Deus (vv. 23-30).

Alguns dos que estavam ali perto, ouvindo-o, disseram: “Vejam, ele está chamando Elias!” Alguém correu e embebeu uma esponja em vinagre, colocou-a na ponta de uma vara e lhe deu de beber, dizendo: “Deixai! Vamos ver se Elias vem tirá-lo da cruz.” Então Jesus deu um forte grito e expirou (vv. 35-37).

O grito de Jesus é mal entendido e confundido com o nome de Elias cujo nome hebraico Eli-Yahu significa “Meu Deus é Yhwh (Javé)”. O profeta Elias (cf. 9,4s) vivia cerca de 800 a.C. e foi arrebatado ao céu (2Rs 2). Os judeus esperam sua volta (Ml 3,1.23s) para ele anunciar o messias (função que João Batista assumiu, cf. 9,11-13). Na devoção popular, era vista como santo da última hora e das causas impossíveis.

Dando de beber vinagre (misturado com água era bebida comum e barata), talvez queira dar mais uns minutos de vida para ver se Elias vier, ou alude ao Sl 69,22 (cf. o vinho acima v. 23).

Em Mc, Jesus morre abandonado por todos. Seus discípulos “fugiram todos” (14,51), nenhum homem bom ficou ao lado de Jesus, só algumas mulheres discípulas da Galileia estavam ali, mas “olhando de longe” (v. 40, na versão longa da nossa liturgia). A luz do céu se escondeu, nem Elias vem socorrê-lo. Mc quer mostrar o lado humano e sofrido de Jesus, que não é um messias triunfalista para fazer guerra (Mc escreveu durante a guerra Judaica da qual os cristãos não participaram). Ele morre abandonado “com um forte grito” (v. 37).

Os outros evangelistas mudaram os acentos: Lc mudou o salmo (Sl 31,6 expressa confiança); em Mt 27,51b-53 segue-se um terremoto e uma breve ressurreição dos santos (alude a Ez 37); em Jo, Jesus é soberano e, na presença da sua mãe e do discípulo amado, conclui a consumação da sua obra, inclinando sua cabeça (Jo 19,25-30).

Neste momento a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes. Quando o oficial do exército, que estava bem em frente dele, viu como Jesus havia expirado, disse: “Na verdade, este homem era Filho de Deus!” (vv. 38-39).

Rasgar suas vestes era um gesto de luto (Caifás em 14,63; cf. Jl 2,13). A presença divina localizava-se no templo. A cortina rasgada pode sinalizar a tristeza e a ira de Deus pela morte do seu filho. Danilo César dos Santos Lima (Vida Pastoral 2018) comenta: Não se trata de um tecido qualquer, mas de uma indumentária de proporções monumentais e grossa espessura. O culto a Deus se coloca do centro (Templo) para a periferia (Gólgota, fora dos muros), lá onde se realiza a vontade de Deus e onde brilha a glória do seu amor, da verdade e da inocência do seu Filho, a ponto de casar o reconhecimento de um pagão: “Verdadeiramente, esse é o Filho de Deus.”

Também pode anunciar o fim do templo que aconteceu em 70 d.C., durante a redação do Evangelho de Mc e profetizado por Jesus em 13,1s (cf. 14,58; 15,29).

Outra interpretação é que o acesso ao sagrado, antes reservado para o sumo sacerdote, agora está aberto “para todos os povos” (11,17). A cortina do santuário separava o lugar do santíssimo onde estava, antes do exílio, a arca da aliança que continha as tábuas com os 10 mandamentos como pedestal da presença de Deus (Ex 25,21s; 1Rs 8,6-9). A arca se perdeu na destruição do primeiro templo em 586 a.C. (cf. Jr 3,16), o espaço ficava vazio, mas sagrado: só um dia por ano, no yom kippur (dia da expiação e perdão, Lv 16), uma única pessoa podia entrar, o sumo sacerdote para pronunciar o nome de Javé (cf. Hb 9,7).

De certo modo, a cena lembra o início do evangelho: no batismo de Jesus, o céu “se rasgou” e uma voz proclamou que Jesus era “Filho” de Deus (1,10s; cf. ainda o significado do batismo em 10,38).

“Na verdade, este homem era Filho de Deus!” (v. 39). O “oficial do exército”, provavelmente um romano, representa a comunidade cristã que professa sua fé no crucificado (cf. 1Cor 1,22-25). O que o título do evangelho declarou (1,1), agora está esclarecido e declarado em público. No batismo, a voz do céu falou apenas para Jesus (1,10s), e depois Jesus procurou manter em segredo sua verdadeira identidade para não ser confundido com um messias nacionalista e guerreiro. Este “segredo messiânico”, ou seja, a proibição de Jesus de não falar sobre seus milagres nem sobre sua identidade (cf. 1,24s.14.44; 3,11s; 5,43; 8,29s; 9,9), agora não faz mais sentido, e deve ser transformado em anúncio (cf. 16,7): É na cruz que se revela a verdadeira identidade de Jesus.

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