20 de agosto 2018, Segunda: Jesus respondeu: “Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (v. 21).

Leitura: Ez 24,15-24

Hoje ouvimos de outra ação simbólica em Ez (cf. 3,22-27; 12,1-20; cf. quinta-feira da semana passada). A não observância de ritos fúnebres pela morte da esposa serve de orientação para os primeiros deportados, a respeito da destruição de Jerusalém em 587 a.C.

O profeta não só cumpre sua missão com a boca, mas pode fazê-lo com a vida (cf. Jr 16; Is 53). Situações comuns em outros homens sobem ao nível de oráculo, quando Deus as toma para comunicar sua mensagem. Não é uma pantomima (gesto em silêncio) que o profeta representa; é sua própria vida adquire novo sentido e a palavra ganha intensidade.

A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ”Filho do homem, vou tirar de ti, por um mal súbito, o encanto de teus olhos (vv. 15-16a).

“O encanto dos olhos” é uma expressão de ternura que designa aqui a esposa do profeta (cf. v. 18); em v. 20 significa o templo; Lm 2,4 aplica a expressão aos soldados tombados em Jerusalém.

Tirar de ti, por um mal súbito”; outros traduzem: arrebatar subitamente, arrancar brutalmente. O termo designa uma doença fulminante (Nm 14,37; 17,13.14 etc.).

Mas não deverás lamentar-te nem chorar ou derramar lágrimas. Geme em silêncio, sem fazer o luto dos mortos. Põe o turbante na cabeça, calça as sandálias nos pés, sem encobrir a barba, nem comer o pão dos enlutados” (vv. 16b-17).

O profeta não deve praticar gestos rituais que expressam e desafogam a dor (cf. Jr 16,5-7), “nem comer pão dos enlutados” (lit. o pão dos homens). São cerimônias de luto que a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 839) explica: Trata-se de um conjunto de ritos que marcavam um luto; os parentes do defunto iam, cabeça descoberta, descalços, o rosto em parte coberto por uma espécie de lenço; incapazes de se alimentar por si mesmo, comiam o pão que lhes era oferecido pelos vizinhos ou pelos parentes (cf. Jr 16,7).

Eu tinha falado ao povo pela manhã, e à tarde minha esposa morreu. Na manhã seguinte, fiz como me foi ordenado (v. 18).

A palavra de Deus não demora a se cumprir (cf. v. 1s; Is 55,11). Em Sl 90, 5s, compara-se a vida humana “como erva que brota de manhã; de manhã ela germina e brota, de tarde ela murcha e seca”.

Então o povo perguntou-me: “Não nos vais explicar o que têm a ver conosco as coisas que tu fazes?” (v. 19).

A conduta de Ezequiel é estranha e provocadora, desperta estupor e curiosidade. Na verdade, Ez critica poucas vezes os que foram levados junto com ele ao exílio (só em cap. 18), mas com muita paixão fala contra os remanescentes de Jerusalém. Por isso foi menos perseguido do que Jeremias que atuava nesta cidade.

Eu respondi-lhes: “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: Fala à casa de Israel: Assim diz o Senhor Deus: Vou profanar o meu santuário, o objeto do vosso orgulho, o encanto de vossos olhos, o alento de vossas vidas. Os filhos e as filhas que lá deixastes, tombarão pela espada (vv. 20-21).

Depois de ter chamado atenção pelo gesto estranho, Ez o explica ao povo. O próprio Senhor vai “profanar” seu santuário, ou seja, priva-o do caráter sagrado (cf. Lm 2,6-8). O templo é “o objeto do vosso orgulho, o encanto de vossos olhos, o alento de vossas vidas”; o triplo predicado exalta a força protetora, a beleza artística e o valor espiritual do templo (cf. Mc 13,1p: os discípulos admiram a beleza do templo, mas Jesus anuncia sua destruição).

Os “filhos e filhas” (v. 21) são os familiares deixados na deportação de 597 a.C.; por ocasião da deportação de 596, só uma parte da população teve de deixar a Palestina (Ezequiel faz parte dessa). O profeta anuncia as represálias que sofrerão os que ficaram, filhos ou filhas dos primeiros deportados.

E fareis assim como eu fiz: Não cobrireis a barba, nem comereis o pão dos enlutados, levareis o turbante na cabeça, as sandálias nos pés, sem vos lamentar nem chorar. Definhareis por causa de vossas próprias culpas, gemendo uns para os outros (vv. 22-23).

Ezequiel não proíbe os habitantes de Jerusalém de se lamentarem e chorarem sua culpa, mas os acontecimentos serão tão súbitos (como a morte da sua esposa, vv. 16-18) que eles não terão essa possibilidade. “Gemendo uns para os outros”, algumas versões entenderam: cada qual consolará seu irmão.

Ezequiel servirá para vós como sinal: Fareis exatamente o que ele fez; quando isso acontecer, sabereis que eu sou o Senhor Deus” (v. 24).

Ezequiel é “sinal” (12,6) para o povo, como outrora foram as intervenções de Deus na historia de seu povo (Dt 4,34; 7,19; 26,8; 29,2 etc.). O profeta é hoje, pelo menos a partir de Is (8,18; 20,3), o “presságio”, o sinal da obra que Deus realiza (cf. 24,24.27; Zc 3,8).

“Sabereis que eu sou o Senhor Deus”. Ez anota 72 vezes esta frase no final da uma profecia (5,13; 6,7.10.13s; 7,4.9.27; etc.). O conhecimento de Deus está ligada ao seu nome. Com o nome se pode chamar e invocar a pessoa representada por ele, por isso o nome de Deus tornou se tal sagrado que não se pronunciava (cf. Ex 20,7).  Lit. “Eu sou Javé”; o termo “Senhor” é tradução grega do nome hebraico de Deus Yhwh (“Javé”) que se não se pronunciava mais. “Javé” em aramaico (dialeto hebraico comum entre os exilados) designa: “Eu chamo a existir” ou “eu estou presente” (o grego traduz “Eu sou que sou”, cf. Ex 3,14). A história se tornará um prova de Deus, mas só no final. Saber quem é Javé significa reconhecê-lo como alguém que se impõe em todo caso. Conhecer Deus não é um saber teórico, mas um saber prático pelo uso, trato e convivência.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 812) comenta o significado teofânico desta frase, ou seja, como Deus se manifesta na história: Em Israel sabe-se que Deus se deu a conhecer a seu povo e lhe revelou seu nome misterioso; isto aconteceu por ocasião dos acontecimentos do êxodo (no Egito, diz 20,6), quando Israel veio a saber que Deus é o Senhor. O culto faz uma evocação periódica destes eventos, sempre marcada pela proclamação do nome divino, à qual respondem as aclamações do povo prosternado; Israel reconhece que Deus é o Senhor. Mas há outra ocasião de descobrir o senhorio de Deus. Visto que os atos revelam as pessoas (Gn 42,34), os gestos de Deus, principalmente sua participação nos combates de um povo em luta pela posse de uma terra, mostram que ele é o Senhor. Mostram-no pelo menos aos que querem ou que podem vê-lo – pois o significado teofânico destes gestos guerreiros nem sempre é evidente. É por isso que o profeta intervém e faz descobrir o mistério que se oculta no coração da história (1Sm 17,46-47; 1Rs 20,13.28). – Tal é o pensamento de Ez; o sacerdote até então preocupado com o sentido profundo dos ritos que realizava, doravante se aplica a perscrutar os sinais da presença de Deus no curso da história e a mostrar que através dos acontecimentos, trágicos ou reconfortantes, sinais de julgamentos ou de salvação, Israel “conhece quem é o Senhor”. Este valor teofânico de uma história na qual as nações desempenham seu papel deve permitir aos povos pagãos fazer a mesma descoberta… (cf. 17,24; 20,12.20; 21,4.10; 22,22; 28,26; 29,6; 36,23.36; 37,28; 39,22)

 

Evangelho: Mt 19,16-22

Hoje o Evangelho demonstra uma vocação fracassada por causa do apego aos bens materiais. Mt copiou de Mc 10 as instruções de Jesus sobre família, crianças e bens.

Alguém aproximou-se de Jesus e disse: “Mestre, o que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?” (v. 16).

Este “alguém” (que “vem correndo e se ajoelhou” em Mc 10,17) se caracteriza em Mt depois como “jovem” (v. 20; enquanto em Lc 18,18 é “uma pessoa importante”). Sua pergunta é essencial: “Mestre, o que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?” (cf. Lc 10,25). No Deuteronômio, Deus promete vida ao povo na terra prometida (cf. Dt 5,32s etc.); o jovem refere-se à vida perdurável na era definitiva. A pergunta revela que ele acredita na ressurreição (cf. Dn 12,2s; 2Mc 7,9.36) e sabe que não basta pertencer ao povo de Deus para salvar-se, mas precisa da decisão e da conduta ética do indivíduo. É a Lei que orienta para isso, mas na época de Jesus havia várias interpretações da lei que confundiam o povo. Mt mudou o relato de Mc em respeito a seus leitores judeu-cristãos: cortou o gesto (ajoelhar-se) e uma palavra (um rabino não é invocado como “bom” mestre, cf. Mc 10,17) e especificou sua pergunta sobre fazer “de bom” (cf. Am 5,14s; Mq 6,8).

Jesus respondeu: “Por que tu me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom. Se tu queres entrar na vida, observa os mandamentos.” O homem perguntou: “Quais mandamentos?” (vv. 17-18a).

Mt modificou também a pergunta de Jesus (Mc 10,18: “Porque me chamas de bom? Só Deus é bom”), mas também se refere a Deus, sem dizer seu nome: “Um só é o bom”; enquanto os homens são maus e precisam deixar se orientar pela vontade de Deus para serem bons (e perfeitos, cf. v. 21; 5,48). A vontade de Deus se manifestou nos mandamentos. Mas existem muitos, ao total são 613 na Torá (“Lei” de Moisés, em grego: Pentateuco, os primeiros cinco livros do AT). O jovem quer saber, quais deles servem para entrar na vida eterna, ou seja, são os mais importantes (cf. 22,36).

Jesus respondeu: “Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, e ama teu próximo como a ti mesmo” (vv. 18-19).

Jesus cita a segunda tábua da Lei, ou seja, a segunda parte dos dez mandamentos (decálogo) se refere à relação com o próximo. De certo modo, a primeira tábua (os primeiros três mandamentos se referem a Deus) já estava incluída na frase anterior sobre a unicidade e bondade de Deus (cf. Dt 6,4-6). Aliás, Jesus não cita a proibição das imagens no primeiro mandamento, nem o segundo mandamento sobre o nome de Deus, nem o terceiro sobre o sábado; os cristãos vão mudar parte disso (cf. Ex 20,2-11; Dt 5,7-15). Não citando os três primeiros, deu margem para a Igreja depois modificar o decálogo: tirando a proibição das imagens e trocando o sábado pelo domingo, ficando como primeiro mandamento, “amar a Deus sobre todas as coisas” (cf. 22,37; Dt 6,5); é assim que a catequese hoje ensina.

A sequência dos mandamentos citados (Ex 20,12-16; Dt 5,16-20) é diferente (já em Mc): Jesus cita o 5º, 6º, 7º e 8º mandamento, mas o 4º no final (vv. 19; cf. 15,4-6), Mt substituiu “não prejudicarás ninguém” de Mc 10,19 pelo amor ao próximo (Lv 19,18; cf. Mt 5,43; 22,39p; Rm 13,9; Gl 5,14). Este acréscimo indica que se trata de um resumo da lei e dos profetas (cf. 22,39s; 7,12), já que a segunda tábua do decálogo se refere aos deveres para com o próximo (sobre a exegese do decálogo, cf. o comentário de 6ª feira da 16ª semana, ano impar).

O jovem disse a Jesus: “Tenho observado todas essas coisas. O que ainda me falta?” (v. 20).

O “jovem”, como tal apresentado por Mt (em Mc, o homem disse: “Tenho observado… desde minha juventude”), parece subestimar-se; pelo menos a respeito do amor ao próximo, é difícil imaginar um rico (v. 22) que tem “observado tudo” (cf. 25,31-46). Ele parece sentir isso, por que ele mesmo pergunta o que ainda falta.

Jesus respondeu: “Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (v. 21).

Mt quer motivar o jovem para seguir Jesus com generosidade. Para ser “perfeito”, Jesus dá um conselho: dar os bens aos pobres e segui-lo. A perfeição é mais do que pura observância dos dez mandamentos (cf. 5,48), é a “justiça maior” do que aquela dos fariseus e doutores da lei (5,20): não mero cumprimento, mas seguimento (cf. as bem-aventuranças no início do sermão da montanha, enquanto Moisés no monte Sinai apresentava só a lei que começa com as proibições do decálogo em Ex 20; Dt 5).

O jovem tem cumprido todos os mandamentos, exceto o primeiro, de amar a Deus de todo coração (sobre todas as coisas) e amar o próximo como a si mesmo (22,38s). No judaísmo surgiu a ideia de que esmolas e boas obras serão recompensadas no céu (cf. Mt 6,2-4; 6,9-21): um “tesouro no céu” (6,20; cf. 13,40.52)

Quando ouviu isso, o jovem foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico (v. 22).

A vocação e a perfeição do discípulo dependem de sua situação concreta. Aqui, a recomendação de Jesus de dar os bens aos pobres representa a suma da lei (amar o próximo) para este jovem. Mas ele ama demais a si mesmo e o mundo; apegado aos bens, sai triste, como eram também os discípulos depois do anúncio da paixão (17,23).

O jovem rico no evangelho fracassou na vocação, mas o texto inspirou Santo Antão, São Francisco e outros santos e santas a doarem seus bens e levarem uma vida simples. A exigência de Jesus é vista como um “conselho” para alguns, não como mandamento para todos (cf. 1Cor 7,10-25); assim se vive os três conselhos, “pobreza, castidade, obediência”, nas congregações religiosas. Mas a intenção de Mt não era de formar duas classes de cristãos (consagrados, leigos), mas de priorizar o seguimento a Jesus e lembrar a todos das suas obrigações sociais e da opção preferencial pelos pobres de Jesus e de toda igreja (cf. Mt 5,3; 25,31-46; Lc 4,18; 6,20-25; 16,19-31; …).

O site da CNBB comenta: Deus nos ama com amor eterno e, por isso, quer relacionar-se conosco. A partir disso, devemos perceber qual é o verdadeiro sentido da religião. O que caracteriza o verdadeiro cristão não é a mera observância dos mandamentos, mas a busca da perfeição que está no seguimento de Jesus, portanto no relacionamento com ele. Porém, existem valores deste mundo que se tornam obstáculo para este relacionamento, como é o caso dos bens materiais, que impediram o jovem de buscar livremente a vida eterna e a perfeição, através da caridade e do seguimento de Jesus, embora observasse todos os mandamentos.

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