06 de abril de 2017 – Quinta-feira, Quaresma 5ª semana

Leitura: Gn 17,1-9

A leitura de hoje fala do tempo remoto dos patriarcas. Abraão viveu por volta de 1.800 a.C. É uma época distante não só para o leitor de hoje, mas também já era para o autor que pertence à tradição sacerdotal que escreveu este texto durante o exílio na Babilônia por volta de 570 a.C.. Os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados de “Lei (Torá) de Moisés” ou “Pentateuco”, são uma composição de quatro tradições: javista, eloísta, sacerdotal e deuteronomista.

Abrão prostrou-se com o rosto por terra. E Deus lhe disse: “Eis a minha aliança contigo: tu serás pai de uma multidão de nações. Já não te chamarás Abrão, mas o teu nome será Abraão, porque farei de ti o pai de uma multidão de nações. Farei crescer tua descendência infinitamente. Farei nascer de ti nações, e reis sairão de ti (vv. 3-6).

Depois de vários relatos javistas (Gn 12,1-3.7; 13,14-17; ou talvez eloísta em Gn 15) em que Deus prometeu a Abrão terra e descendência, a tradição sacerdotal também apresenta a aliança com Abrão. Longe da sua pátria e do templo, que foi destruído, os redatores sacerdotes estão interessados em tradições e rituais que mantém a identidade dos judeus no meio dos pagãos (na Babilônia): a fé na palavra do único Deus (Gn 1), o sábado (Gn 2,1-4; Ex 16) e a circuncisão (Gn 17).

O conteúdo da promessa a Abrão é o mesmo: “descendência infinitamente” (v. 6), mas acrescenta-se que também “reis sairão de ti”, o que indica a época do autor que já passou pela monarquia (de Saul, Davi, Salomão até o exílio da Babilônia). O que muda nesta aliança é o nome do patriarca (cf. 32,29) e a contrapartida, além da fé, o ritual da circuncisão (vv. 10-27).

No relato mais antigo de Gn 15, o sinal da aliança (pacto, contrato) era por parte de Deus: Ele passou como uma fogueira fumegante entre animais esquartejados. No texto sacerdotal de Gn 17, o “sinal da aliança” (cf. 9,12s) é a circuncisão de Abraão e sua descendência masculina (vv. 10-27); como o conteúdo primeiro da aliança é a fecundidade (descendência), sua marca se leva no órgão da fecundidade. A circuncisão é um rito físico com o qual se expressa a pertença a um povo com o qual Deus faz aliança. Ela continua a ser praticada por judeus, muçulmanos e tribos africanas.

A circuncisão é mais antiga que Israel (cf. Jr 9,25). Na sua origem, e atualmente em algumas culturas, é rito de iniciação à puberdade. Em Israel desaparece este aspecto, ao adiantar-se para o oitavo dia do nascimento do menino (v. 12), quando também este recebe o nome (Lc 1,59; 2,21). Na ocasião, é oportuno a mudança do nome do patriarca Abrão para ”Abraão” que significa “pai de uma multidão” (v. 5; em hebraico uma alusão: Ab é pai, hamon é multidão). A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 44) comenta: Na realidade, Abrâm e Abrahâm parecem ser variantes dialetais de um mesmo nome, cujo significado é: “o Pai (sem dúvida a divindade protetora do clã) é elevado” ou “o pai ama”. 

Os profetas pedirão a circuncisão do coração (Dt 10,16; Jr 4,4). Sendo judeu, Jesus também foi circuncidado (Lc 2,21). Por influência de Paulo (cf. Rm 2,25-29 etc.), o Concilio dos apóstolos em Jerusalém (49 d. C.) decidiu que basta o batismo para pertencer ao novo povo de Deus, à Igreja (cf. At 15-16).

Estabelecerei minha aliança entre mim e ti e teus descendentes para sempre; uma aliança eterna, para que eu seja teu Deus e o Deus de teus descendentes. A ti e aos teus descendentes darei a terra em que vives como estrangeiro, todo o país de Canaã como propriedade para sempre. E eu serei o Deus dos teus descendentes”. Deus disse a Abraão: “Guarda a minha aliança, tu e a tua descendência para sempre” (vv. 7-9).

Na época do desterro (séc. VI a.C.) era importante lembrar os judeus que a aliança antiga entre Deus e Abraão (séc. XVIII a.C.) é uma “aliança eterna” (v. 7; e três vezes “para sempre”, vv. 7.8.9), portanto vale para toda descendência de Abraão, também para aqueles que não moravam mais em Jerusalém e não podiam mais rezar no Templo, que estava lá, no monte Sião, em ruínas. Mas estes que estavam “juntos aos canais da Babilônia, sentados e chorando com saudades de Sião” (Sl 137,1), também podiam realizar o que “El-Shaddai” – o Deus todo-poderoso (17,1; cf. Ex 6,3) exige de Abraão: “Anda de acordo comigo e sê honrado” (17,1). Assim a comunhão com Deus será possível, e Deus renova sua promessa de terra e descendência (vv. 2-9; cf. Gn 12,2-3.7; 15,5-18). Assim o povo exilado poderá esperar voltar à sua terra e prosperar em grande número.

 

Evangelho: Jo 8,51-59

Continuamos ouvindo as disputas de Jesus com os judeus (autoridades judaicas) em Jerusalém que já ouvimos nos últimos dias. Mas o evangelho saltou o trecho mais antijudaico de todo NT (vv. 42-47) que só se pode entender no contexto histórico daquela época (cf. comentário de ontem). Os “judeus” em João representam os descrentes no mundo. Eles não aceitam a palavra de Jesus e o chamam de “samaritano” (um herege; cf. 4,4-42; 2 Rs 17) que tem um “demônio” (vv. 48.52; cf. 7,20; 10,20; Mt 11,18; Mc 3,20s). Jesus se defende alegando seu serviço dedicado ao Pai. Sua meta é oferecer vida e salvação.

“Em verdade, em verdade, eu vos digo: se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte” (v. 51).

Jesus salienta mais uma vez sua relação única para com Deus e a importância de permanecer na sua palavra (cf. vv. 24.31s; 14,23.26). “Se alguém guardar minha palavra, jamais verá a morte” (lit. “jamais vai saborear a morte”, cf. Hb 2,9). Com esta proclamação de poder dar a vida eterna (cf. 3,16), Jesus se iguala, indiretamente, a Deus (cf. 5,18-24; 11,25s). Só Deus pode vencer a morte (cf. Dt 32,39, como consequência de Javé, “Eu sou”, cf. Jo 8,24.27).

Disseram então os judeus: “Agora sabemos que tens um demônio. Abraão morreu e os profetas também, e tu dizes: “Se alguém guardar a minha palavra jamais verá a morte”. Acaso és maior do que nosso pai Abraão, que morreu, como também os profetas? Quem pretendes tu ser?” (vv. 52-53).

Os judeus reagem a esta oferta de vida com um mal-entendido e uma acusação (outra vez de ter um “demônio”, cf. v. 48; 7,20; 10,20; Mt 12,24-37; 9,34; 11,18-19; Lc 11,15-28), porque eles entendem mal como que Jesus prometesse vida infinita aqui na terra (cf. Mc 9,1), “jamais verá a morte”, mas: “Abraão morreu e os profetas também” (cf. Zc 1,5). “Quem pretendes tu ser? “ (cf. Jo  5,18; 10,33).

Jesus respondeu: “Se me glorifico a mim mesmo, minha glória não vale nada. Quem me glorifica é o meu Pai, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus. No entanto, não o conheceis. Mas eu o conheço e, se dissesse que não o conheço, seria um mentiroso, como vós! Mas eu o conheço e guardo a sua palavra. Vosso pai Abraão exultou, por ver o meu dia; ele o viu, e alegrou-se” (vv. 54-56).

Primeiro Jesus se defende insistindo outra vez ele não procura a própria honra ou prestígio: ele busca apenas a glória de Deus (cf. v. 49s; 7,18). Aquele Deus que os judeus (autoridades judaicas) dizem conhecer, mas não conhecem. Por mais que repitam a fórmula tradicional “Javé, nosso Deus” (cf. v. 54), não conhecem ou não reconhecem o verdadeiro Deus, porque rejeitam o seu enviado, Jesus. A invocação deles é uma mentira, é invocar em vão. Jesus, porém, conhece o Pai e não pode mentir, negando-o (v. 55; cf. 1,18; 5,37; a comunidade cristã faz suas essas palavras).

Depois Jesus argumenta voltando a Abraão: primeiro lhes reconhece que é “vosso pai”, daí passa, segundo interpretações da época, a uma revelação messiânica que Abraão teria tido quando recebeu as promessas (cf. Gn 15,9ss; Hb 11,9): “Vosso pai Abraão exultou por ver o meu dia, ele o viu e alegrou-se” (v. 56). Essa visão profética e escatológica (“ver” os últimos dias como fim do mundo, julgamento,…), foi concedido no judaísmo a todos as grandes figuras do AT.

No AT, falava-se do “dia do Senhor”, o dia do juízo e da instauração do reino messiânico (Am 5,18; Is 13,6; Ez 30,3; Jl 1,15); a expressão aplica-se agora à vinda de Jesus (cf. Lc 17,24; 1Cor 1,8; 5,5; 2Cor 1,14). Em espírito, Abraão via o mundo futuro, o dia escatológico, que é o presente de Jesus (cf. 12,41). Abraão “viu este dia e alegrou-se”, mas como os judeus não se alegram com Jesus, mostram mais uma vez que não são filhos verdadeiros de Abraão (cf. v. 39s).

Os judeus disseram-lhe então: “Nem sequer cinquenta anos tens, e viste Abraão!” Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão existisse, eu sou” (vv. 57-58).

Mais uma vez, os judeus entendem mal: “Nem sequer cinquenta anos tens e viste Abraão?” (v. 57). Em Lc 3,23, Jesus tinha “mais ou menos trinta anos”, quando começou seu ministério depois do batismo. Mas os judeus conseguem ver em Jesus apenas o ser humano e terrestre (cf. 6,42) e nunca sua dimensão celeste, para eles é um possesso (vv. 48.52; 7,20; 10,20).

Jesus, porém, enfatiza agora esta dimensão, declarando sua preexistência e seu título (“Eu sou” = Javé em Ex 3,14: “Eu sou aquele que sou”): “Antes que Abraão existisse, eu sou” (v. 58; cf. 1,1-3; 13,19; cf. a preexistência da sabedoria antes da criação em Pr 8,22-31). O Filho eterno existe já antes de Abraão. Preexistência é participação da eterna divindade de Deus (cf. 5,26; 17,5.24) O Credo Niceno-constantinopolitano a expressará no séc. IV: nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por Ele todas as coisas foram feitas.

Então eles pegaram em pedras para apedrejar Jesus, mas ele escondeu-se e saiu do templo (v. 59).

Quando faltam os argumentos, parte-se para violência (cf. 18,22s). Tomando a resposta de Jesus como blasfêmia, os judeus procuram apedrejar Jesus (cf. 10,31; At 7,55-60; Lv 24,16), mas ele vai-se embora às escondidas, como tinha vindo (7,10). Não os judeus, mas aquele que nasceu antes de todos os séculos determinará a hora da sua morte (cf. 2,4; 7, 6.30.44; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1).

O site da CNBB comenta: O nosso Deus é o Deus da vida e da vida em abundância. Ele é causa de alegria para todos os que verdadeiramente crêem nele e em Jesus ele manifesta todo o amor que tem por nós. Assim sendo, Jesus, que é o Filho do Deus vivo, veio nos ensinar o caminho da verdadeira vida, por isso nos diz que quem guarda a sua palavra jamais verá a morte. E como todos nós desejamos a vida e nos alegramos com ela, Jesus também é a causa de nossa alegria, assim como foi a causa para Abraão exultar de alegria ao ver o seu dia, ao reconhecer o seu Deus como o Deus da vida. Aos que não acreditam nas verdades do Reino de Deus e rejeitam os valores evangélicos, só resta a revolta, a tristeza e a morte.

Voltar