02 de outubro de 2017 – Segunda-feira, Santos Anjos da Guarda

No dia dos santos Anjos da Guarda, três dias depois da festa dos três arcanjos, Miguel, Gabriel e Rafael (29 de setembro), ouvimos o próprio “envio” de um anjo (leitura) e sobre os pequeninos que têm anjos no céu na presença do Pai (evangelho).

Leitura: Ex 23,20-23

Depois do encontro com Javé Deus no monte Sinai, onde foi entregue a lei, a libertação do povo de Israel continua com a peregrinação pelo deserto e a paulatina conquista da terra prometida. O texto de hoje (mais os vv. 24-33) é da redação deuteronomista (séc. VII a VI a.C.) e apresentado como conclusão do (mais antigo) Código da Aliança (Ex 21-23).

Códigos antigos concluíam com bênçãos e maldições (cf. Lv 26,3-45; Dt 27-28 e os códigos de Lipit Ishtar e de Hamurábi). Como a bênção prometida a Jacó ao deixar Canaã, “eu estou contigo e te guardarei em todo lugar aonde fores” (Gn 28,15.20-22), o Senhor Deus estará com seu povo de Israel (apelido de Jacó, cf. Gn 32,29; 35,10) e o trará de volta para sua terra.

(Assim diz o Senhor:) Vou enviar um anjo que vá à tua frente, que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que te preparei (v. 20).

Este anjo parece distinto de Deus (cf. Gn 16,7), se bem que sua ação seja a de Javé. É um anjo protetor (Gn 24,7; Nm 20,16), que já anuncia o acompanhante pelo caminho (cf. Tb 5,4). “Anjo” é um enviado, mensageiro ou mensagem, homem ou manifestação. Em qualquer caso, é presença sentida do Senhor, que desce temporariamente à visibilidade para um propósito especial.

Nos textos mais antigos, o “Anjo de Javé” (Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2; Jz 2,1, etc.; cf. no NT: Mt 1,20; 28,2; At 7,38) ou o “Anjo de Deus” (Gn 21,17; 31,11; Ex 14,19, etc.) não é um anjo distinto de Deus (como aqui em nossa leitura), é o próprio Deus quando se apresenta em forma visível aos seres humanos. Nos textos posteriores, os anjos são criaturas de Deus e inferiores a ele, membros de sua corte celeste, chamados “filhos de Deus” (Jó 1,6; 2,1; 38,7; Sl 29,1; 82,1; 89,7), “santos” (Jó 5,1), “exército do céu” (1 Rs 22,19; Ne 9,6; Sl 103,21; 148,2). Da sua assembleia (Jó 2,1) partem os mensageiros (daí o sentido a palavra anjo) que Deus envia à terra. Umas vezes são executores de suas vinganças, anjos de destruição (Ex 12,23; cf. 2Rs 19,35; Ez 9,1; Sl 78,49), outras vezes são protetores dos povos (Ex 23,20; Dn 10,13) e de indivíduos (Tb 3,17; 5,4…cf. Gn 24,7), outras vezes intermediários ou intérpretes na profecia e no gênero apocalíptico (Ex 40,3; Dn 8,16; 9,21s; 10,5s; Zc 1,8s; 2,2; Ap 1,1; 10,1-11 etc.). A doutrina dos anjos progredirá no judaísmo, no Novo Testamento e nos livros apócrifos.

“Caminho” e “terra” são termos fixos da fé e da teologia do Antigo Testamento, como também o verbo “levar, conduzir”, mas não o verbo “cuidar, guardar” (cf. a benção aarônica em Nm 6,24). Enquanto Israel crescia no Egito, Deus lhe preparou a terra, dirigindo a ação da natureza e da história (Sl 68,11). Dt 6 e 8 mostram como outros povos trabalharam para Israel.

Respeita-o e ouve a sua voz. Não lhe sejas rebelde, porque não suportará as vossas transgressões, e nele está o meu nome (v. 21).

A condução para as bênçãos está na obediência ao anjo durante a jornada. “Não lhes seja rebeldes” (grego) ou “não o amargures” (hebraico). A conquista da terra prometida está condicionada à escuta da Palavra de Deus. Os anjos são mensageiros, anunciadores, são “vozes”.

“Nele está o meu nome”; o anjo é portador do nome divino; portanto a desobediência ao anjo é desobediência a Deus. O nome exprime, representa e manifesta a pessoa. O anjo atua em “nome” do “Senhor” (Yhwh, Javé, cf. Ex 3,2-14): daí a gravidade de não acatá-lo, porque ele possui toda autoridade divina.

Se ouvires a sua voz e fizeres tudo o que eu disser, serei inimigo dos teus inimigos, e adversário dos teus adversários (v. 22).

Esta promessa universal lembra a vocação de Abraão que é mais positiva em Gn 12,3. O homem poderia abusar desta aliança que promete ajuda divina nas adversidades; mas ela está condicionada à absoluta fidelidade e a obediência do povo à voz do anjo, à Palavra e Lei de Deus.

O meu anjo irá à tua frente e te conduzirá à terra dos amorreus, dos hititas, dos fereseus, dos cananeus, dos heveus e dos jebuseus, e eu os exterminarei (v. 23).

Os seis ou sete povos (Dt 7,1) são os habitantes antigos de Canaã, cuja terra Deus prometeu a Abraão e Moisés (cf. Gn 15,20; Ex 3,8.17; 13,5; 23,23; 33,2; 34,11; Dt 7,1; Js 3,10; 9,1; 11,3; 12,8; 24,11; Jz 3,5; 1Rs 9,20; Esd 9,1; Ne 9,8; 2Cr 8,7).

Não é fácil identificar os grupos étnicos: o nome dos “amorreus” era um termo babilônico que designava os semitas “ocidentais” (ao oeste da babilônia) e equivale com os “cananeus”. Os “fereseus” significam originalmente os “habitantes da colina”, talvez em contraste às cidades cananeias na planície. Os “hititas” (heteus) devem ser famílias espalhadas na área (cf. 2Sm 11,3), porque o Império hitita na Ásia menor nunca alcançou a Palestina. Os “heveus” são provavelmente os horritas (horreus), um povo no norte da Mesopotâmia no segundo milênio (cf. Gn 34,2; Js 9,7). Os “jebuseus” são os habitantes nativos de Jerusalém (cf. 2Sm 5,6). O extermínio dos povos antigos.

“Eu os exterminarei”, como é relatado depois a conquista da terra por Josué, também pela redação deuteronomista. O culto exclusivo a Javé, o combate aos deuses dos outros povos e a busca por alargar fronteiras: são marcas do sonho e da teologia do rei Josias (640-609 a.C.; cf. 2Rs 22-23). Estes textos desta “conquista” não foram escritos para descrever a essência e ação de Deus, mas para encorajar os judeus a resistir ao império dos assírios que já tomou o reino do norte com sua capital Samaria (722 a.C.) e estava ameaçando agora o reino do sul (Judá) e sua capital Jerusalém.

A frase semelhante em Ml 3,1, “Eis que vou enviar o meu mensageiro (anjo) para que prepare um caminho diante de mim”, foi relacionada à volta de Elias (Ml 3,23s; cf. Eclo 48,10) e à chegada de João Batista (Mc 1,2p; Mt 10,10; 17,10-13p; Lc 1,17; em alguns ícones, João Batista é pintado com asas, ou seja, como mensageiro-anjo). O anjo é mensageiro de boas inspirações e nos adverte e reprova quando erramos. Ele caminha, reza e louva a bondade de Deus conosco e por nós.

 

Evangelho: Mt 18,1-5.10

No quarto discurso de Jesus no evangelho de Mt (cap. 18), o evangelista reúne várias instruções para a comunidade que deve ser uma comunidade de irmãos pequenos e humildes. Tema central é a atenção devida aos pequenos, necessitados, ofensores extraviados, é o valor da humildade, da compreensão, do perdão mútuo e da reconciliação. “Crianças (meninos) e pequenos” repetem-se em vv. 1-14, “irmãos” em vv. 15.21.35. Na primeira parte, Mt copia e mescla Mc 9,33-37 com Mc 10,15.

Os discípulos se aproximaram-se de Jesus e perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (v. 1).

O protocolo da época era escrupuloso em designar procedências e definir classes. Os discípulos podem contagiar-se com este costume (23,8-12; cf. a preferência de Pedro em 16,17s ou dos três discípulos em 17,1s). Como será no reino de Deus, que é a nova comunidade na sua dimensão transcendente? A questão é grave devido ao afã em busca de riqueza, de superar-se e de superar, ao menos no conforto com os outros.

Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes, e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus (vv. 2-4).

A resposta de Jesus vai à raiz. Embora contraste com pretensões da época, está na linha de múltiplas declarações do AT sobre exaltação e humilhação (p. ex. o cântico de Ana, 1Sm 2; Sl 113 etc.). Especialmente interessante é Eclo 3,17-20 (19-26). O termo grego paídion (mesma palavra em 2,8-11; 11,16; 19,13s), além da idade, pode denotar o ofício: criança, menino ou criado servente, já que é capaz de responder ao chamado de Jesus. Enquanto no AT se destaca mais a falta de juízo nas crianças (Sb 12,24; 15,14; Eclo 30,1s), em Sl 8,3 e 131,2 se fala delas como modelo de louvor e como exemplo de saber contentar-se. O menino colocado por Jesus no centro (Mc 9,36) é uma presença simbólica: no reino celeste todos serão pequenos, filhos de Deus e esse será sua grandeza. Pode-se comparar a primeira bem-aventurança (os “pobres em espírito”, Mt 5,3).

E quem recebe em meu nome uma criança como esta, é a mim que recebe (v. 5).

Há aqui uma inversão do pensamento. Depois de terem sido exortados de tornarem-se pequenos como as crianças, os discípulos são agora convidados a “acolher, receber” as crianças. Acolher o menino é consequência do que procede (cf. Gn 21,20); pode-se entender em sentido próprio (adoção) ou metafórico (um homem que se tornou criança pela simplicidade; cf. v. 4). Deve-se fazê-lo em atenção a Jesus (“em meu nome”). A comunidade cristã não é a reprodução de uma sociedade que se baseia na riqueza e no poder. Nela, é maior ou mais importante aquele que se converte, deixando todas as pretensões sociais, para pertencer a um grupo que acolhe fraternalmente Jesus na pessoa dos pequenos, fracos e pobres (cf. 25,31-46).

Os vv. 6-9 (omitidos pela leitura da liturgia) são copiados de Mc 9,42-47 e falam do escândalo aos pequenos e da mutilação (simbólica) de membros do corpo que levam a pecar (já mencionada em Mt 5,29-30).

Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus vêem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus” (v. 10).

Já no AT, os anjos protegem pessoas em perigo (Gn 24,7.40; 48,16; Ex 23,20; Sl 91,11; Dn 3,49; cf. 2Mc11,6; 15,22s; Tb 5,6.22; Jt 13,20). Estes anjos são enviados de Deus que cuidam dos pequeninos (cf. Sl 91,11-12), servidores que tem acesso a presença dele (como os que Jacó viu, cf. Gn 28,12).

“Os seus anjos no céu vêem sem cessar a face do meu Pai”, é expressão bíblica que indica a presença dos cortesãos diante do seu soberano (cf. 2Sm 14,24; 2Rs 15,19; Tb 12,15). Aqui a ênfase está menos na contemplação dos anjos (cf. Sl 11,7) do que na assiduidade e familiaridade das suas relações com Deus. No entanto, esta frase fundamentou a convicção de que cada criança e pessoa têm seu anjo pessoal de guarda.

O site da CNBB comenta: Este trecho do Evangelho que nos é proposto pela Igreja na comemoração da memória dos santos Anjos da Guarda… nos apresenta um acréscimo muito importante, que não podemos desconsiderar: a assistência que Deus concede a todos os que são pequenos e a necessidade que existe de valorizarmos aqueles que são os desvalidos do mundo, pois os seus anjos no céu vêem sem cessar a face de Deus. Devemos receber em nome de Jesus todas as crianças, assim como todos os demais desvalidos e excluídos da sociedade para recebermos o próprio Cristo, presente neles.

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