04 de abril de 2017 – Terça-feira, Quaresma 5° Semana

 

Leitura: Nm 21,4-9

A leitura de hoje nos apresenta a serpente de bronze, à qual Jesus se refere no evangelho. O símbolo do deus que cura (uma serpente enrolada numa vara) era frequentemente representado na Antiguidade. Saber os efeitos do veneno e usá-lo em dose pequena para remédios (ex. anestesia) faz parte da medicina em nossos dias também. Na antiguidade, havia um culto à serpente, adorada como divindade protetora e curadora. Nosso relato poderia ser uma tentativa de assimilação de um culto pagão prestado a algum deus. O texto mostra que Israel assimilou esse culto (cf. 2Rs 18,4). Aqui, porém, a serpente de bronze é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada.

Os filhos de Israel partiram do monte Hor, pelo caminho que leva ao mar Vermelho, para contornarem o país de Edom. Durante a viagem o povo começou a impacientar-se, e se pôs a falar contra Deus e contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água, e já estamos com nojo desse alimento miserável” (vv. 4-5).

Os “filhos de Israel” (v. 10) eram os doze filhos (e uma filha) de Jacó (apelidado Israel; Gn 32,29; cf. 34,1; 35,22b-26), que formaram doze tribos e se tornaram um povo no Egito (cf. Ex 1,1-7). Na reflexão religiosa de Israel, o deserto aparece como refúgio (Ex 2,15; 1Rs 17,2-6; 19; Mc 1,4.12p; Gl 1,17; Ap 12,6) e também como lugar privilegiado da prova e das reclamações, ou seja, “murmurações” (Ex 14,11; 15,24; 16,3; 17,1-7; 32; Nm 11,1-4; 12,1; 14,1-4; 16,3.14; 20,2-5; 21,5), de onde se pode sair vitorioso somente pela fé e pela esperança (cf. Sl 78; Hb 3,7-19).

Libertado da escravidão, o povo de Israel passou pelo mar dos juncos, caminhava pelo deserto do Sinai e ficou esperando em Cades; não é uma cidade ou lugar preciso, mas uma região no deserto de Sin (Nm 20,1; 33,36), aqui o principal oásis do norte do Sinai, 75 km a sudeste da Bersabéia (sul de Judá). Este oásis sempre foi uma etapa das caravanas.

Na fronteira da terra de Edom, no “monte Hor”, morreu o irmão de Moisés, Aarão (Nm 20,22–27; 33,38s; Dtn 32,50). “Edom” é região vizinha de Israel, fica na região da Arabá, ao sul de Moab (Jz 17,14-18; Js15,1.21) e se estendeu até o golfo de Ácaba no mar Vermelho. Esaú, irmão mais velho de Jacó, também foi chamado com esse nome (Gn 36,1). Edom recusou passagem ao povo irmão de Israel (Nm 20,14-21), por isso Israel tinha que desviar seu caminho voltando em direção ao mar Vermelho. O nome grego de Edom era Idumeia (o rei Herodes não era judeu, mas idumeio).

Esta história deve ser relacionada com as minas de cobre da Arabá, onde o metal já era explorado no século XII a.C.. Acharam-se em Meneiyeh (hoje, Timna) diversas pequenas serpentes de cobre que sem dúvida eram utilizadas, como a de Moisés, para se proteger contra as serpentes venenosas. Esta região mineira da Arabá se encontra ao caminho de Cades (Nm 13,26) a Ácaba no mar Vermelho (cf. v. 4). O termo “mar Vermelho” não se encontra na Bíblia Hebraica (lá é chamado “mar egípcia”, Is 11,15; ou “mar dos juncos”, cf. Gn 20,1; 28,18; Ex14,2.9. etc.), mas na tradução grega (LXX) e no NT (At 7,36, Hb 11,29).

Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas, que os mordiam; e morreu muita gente em Israel (v. 6).

“Serpentes venenosas” traduz saraf= abrasador, que Is 30,6 (cf. 14,29) representa como uma serpente alada ou dragão. O nome dos serafins de Is 6,2-6 vem da mesma raiz. Na sua origem pode ter-se referido a animais fantásticos, dragões de fogo. Não sabemos quanto de recordação histórica há e quanto de fantasia, no relato da praga.

O povo foi ter com Moisés e disse: “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti. Roga ao Senhor que afaste de nós as serpentes”. Moisés intercedeu pelo povo (v. 7).

Moisés é o grande intercessor em favor do seu povo (cf. no Egito em Ex 5,22s; 8,4; 9,28; 10,17; e no deserto em Ex 32,11-14.30-32; Nm 11,2; 12,13; 14,13-19; 16,22; 21,7; Dt 9,25-29). Esta função é lembrada em Jr 15,1; Sl 99,6; 106,23; Eclo 45,3, e prefigura a intercessão de Cristo e dos santos.

E o Senhor respondeu: “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela viverá”. Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e colocou-a como sinal sobre uma haste. Quando alguém era mordido por uma serpente, e olhava para a serpente de bronze, ficava curado (vv. 8-9).

Quanto ao remédio, a representação do causador do dano para conjurá-lo corresponde a crenças populares: ao tê-lo em imagem, o homem o controla. É uma espécie de homeopatia ou vacina mágica. Mas o autor elimina os elementos estranhos à fé de Israel: é o próprio Senhor quem oferece a seu povo este meio de cura.

O autor faz Moisés intervir intercedendo, o Senhor dando poder ao remédio e os israelitas confessando o pecado. A serpente de bronze colocada sobre uma haste é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada. Ao mesmo tempo, lembra os erros cometidos e as consequências desses erros, para que a marcha se mantenha dentro do projeto libertador de Javé.

Em Sb 16,5-14 comenta-se o episódio, excluindo da imagem todo poder mágico. O Evangelho de João aplica a imagem da serpente a Jesus crucificado, sinal de salvação (Jo 3,14).

 

Evangelho: Jo 8,21-30

Continuamos ouvindo as disputas de Jesus com os ”judeus” (autoridades judaicas da época) em Jerusalém. Essa seção está sob o duplo signo do “eu vou” e “eu sou” (Ez 22,16). O primeiro se refere à paixão e glorificação (v. 21). Esse primeiro demonstrará o segundo (v. 28), que é o titulo divino (Ex 3,14; Is 43,11: Javé, “Eu sou”),próprio de Jesus em Jo, duplicado nesta seção (vv. 24.28).

Jesus disse lhes ainda: ”Eu parto e vós me procurareis, mas morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis ir.” Os judeus comentavam: “Por acaso, vai-se matar? Pois ele diz: Para onde eu vou, vós não podeis ir?” (vv. 21-22).

Essa seção tem um tom polêmico que convida a uma proposta simplificada e extrema. O Moisés do Deuteronômio propôs a oposição extrema e articulada “o bem e o mal, a vida e a morte, benção e maldição” (Dt30,1.15.19). João toma o extremo pecado e morte e deixa, subentendido e necessário, o extremo positivo. A proposta extrema transforma os interpelados em personagens típicas, que encarnam o tipo com intensidade e pureza, do qual se aproximam muitas personagens reais.

Rejeitando Jesus, os “judeus” se perdem sem esperança; pecam contra a verdade (vv. 40.45s). É o pecado contra o Espírito (Mt 12,31p; cf. Jo 7,34). Eles pronunciam outro mal-entendido (cf. já 7,35) que ironicamente contém uma verdade. Suicidar-se é descrito como “ir para seu lugar” (At 1,25). Jesus se entregará voluntariamente à morte; por ela irá para o Pai, e os que não creram não poderão segui-lo.

Jesus continuou: “Vós sois daqui de baixo, eu sou do alto. Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo. Disse-vos que morrereis nos vossos pecados, porque, se não acreditais que eu sou, morrereis nos vossos pecados.”(vv. 23-24).

Já encontramos esta oposição (dualismo) no diálogo com Nicodemos (3,13.31). No âmbito gnóstico, em que o autor escreve, falava-se de dois planos ou duas esferas. Por seus próprios meios, o homem terreno não pode passar ao plano celeste; somente a fé, acolhida como dom, permite a passagem (na heresia do gnosticismo, ao invés, é o conhecimento e não a fé que salva).

“Eu sou” é o nome divino revelado a Moisés (Ex 3,14: Javé, na tradução grega: “Eu sou aquele que sou”), e significado que o Deus de Israel é o único e verdadeiro salvador, para o qual tendiam a fé e a esperança de Israel. Em forma absoluta (“Eu sou”), ocupa em João o lugar do aniYhwh, “Eu sou (Javé)” no AT, uma formula de auto-apresentação ou reconhecimento de Deus (cf. Is 45,18-25 que repete três vezes a fórmula; como objeto de reconhecimento é corrente em Ez). Em Jesus, Deus se faz definitivamente presente (cf. Jo8,28.58; 13,19 e também 6,35; 18,5.8).

Perguntaram-lhe pois: “Quem és tu, então?” Jesus respondeu: “O que vos digo, desde o começo. Tenho muitas coisas a dizer a vosso respeito, e a julgar também. Mas aquele que me enviou é fidedigno, e o que ouvi da parte dele é o que falo para o mundo.” Eles não compreenderam que lhes estava falando do Pai (vv. 25-27).

Há diversas propostas para a enigmática frase inicial desta reposta de Jesus:“antes de tudo, o que vos digo”;“simplesmente o que vos tenho dito”; “primeiramente, por que vos falo?”; “por que vos falarei eu?”; “de início, o que vos digo”; “absolutamente que vos digo”. Alguns relacionam o “começo” com a Sabedoria, “sou o princípio” (Pr 8,22; Eclo 24,9), mas a tradução do Vulgata,“(Eu sou) o princípio, eu que vos falo”, é, gramaticalmente, insustentável. Nossa tradução conserva a matiz temporal, que prepara o segundo “então” do v. 28: os judeus agora, têm oportunidade de conhecer Jesus por sua palavra; quando o conhecerem “elevado” (na cruz) será tarde demais.

Jesus fala apenas o que ouve do Pai (v. 26c; cf. 7,17; 12,49; 14,10).

Por isso, Jesus continuou: “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que eu sou, e que nada faço por mim mesmo, mas apenas falo aquilo que o Pai me ensinou. Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou sozinho, porque sempre faço o que é de seu agrado.” (vv. 28-29).

Aqui é anunciada a glorificação de Jesus por sua “elevação” na cruz que dará uma resposta a interrogação dos judeus (v. 25), mas condenando a sua incredulidade (cf. 19,37; Ap 1,7; Mt 26,64p; 1Cor 2,8). À exaltação da cruz se refere também 3,14 e 12,32-34.

No AT, a formula “sabereis que eu sou (ou: que sou Javé)”afirma o poder divino (cf. v. 24) ou anuncia uma intervenção extraordinária de Javé (Ex 10,2; Ez 6,7.10.13s etc.; cf. Is 43,10, que se aproxima espantosamente de João).

Nem sequer na cruz o Pai abandona o Filho(cf. Mc 15,34p; Sl 22,20),que está cumprindo a vontade do Pai. A morte de Cristo na cruz é exaltaçãoe não prova de que Deus tenha rejeitado Jesus como falso messias.

Enquanto Jesus assim falava, muitos acreditaram nele (v. 30).

O versículo de transição (v. 30) repete a divisão de opiniões e atitudes que as palavras de Jesus provocam (cf. 2,23;7,12.31; 10,42; 11,45; 12,11.42 e os samaritanos em 4,39-41).

O site da CNBB comenta: Os judeus compreendem que a morte de Jesus pode estar próxima, uma vez que Jesus fala de sua partida para onde eles não poderão ir, mas levantam a hipótese de suicídio por parte de Jesus, deixando de perceber que a causa da morte de Jesus é a própria incredulidade deles, da recusa diante da revelação sobre quem de fato é Jesus, da não aceitação do fato que Jesus é o Filho de Deus, o enviado do Pai para fazer a vontade dele e viver em plena comunhão com ele. Alguns judeus creram e a semente do Reino foi lançada, mas muitos não creram, o que resultou na morte de Jesus.

 

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