06 de novembro de 2016 – Domingo,Todos os Santos

Os primeiros cristãos veneravam os mártires que deram sua vida pela fé em Cristo (cf. 1ª leitura). A última perseguição do imperador romano Diocleciano (304) ceifou a vida de tantos mártires, que se tornou impossível de celebrar cada um num dia próprio. No oriente, a Igreja Byzantina (Ortodoxa) de Constantinopla começou comemorar um dia para todos os mártires, no primeiro domingo após Pentecostes.

No ocidente, Papa Bonifácio IV consagrou um antigo templo em Roma que tinha sido construído na era de César Augusto e era dedicado a “todos os deuses” (Pantheon). Quando o Império Romano se tornava cristão, este templo não era mais usado até 609 d.C., quando foi reinaugurado, mas agora consagrado à “Santa Maria e aos Mártires” em 13 de maio de 609 (dia em que os pagãos aplacavam os espíritos dos falecidos em Roma). Aliás, a abóbada enorme desta construção é uma obra prima da engenharia antiga romana (43,3m), ainda hoje a maior cúpula de concreto não reforçado do mundo. Na época do Renascimento, inspirou os artistas (Brunelleschi, Miguelângelo) nas construções em Florença e Roma (séc. 15-16).

Papa Gregório VII (731-741) transferiu a data de 13 de maio para 01 de novembro com a fundação de um oratório na basílica antiga de S. Pedro para as relíquias dos “santos apóstolos, todos os santos, mártires e confessores”. Esta data coincidiu com a festa celta de Samhain, na qual se comemorava os ancestrais mortos. Talvez esta data tivesse sido escolhida para aproximar-se aos povos do Norte (celtas, germânicos) com seu dia dos finados. No reino de Carlos Magno, que englobava todos estes povos, o dia 01 de novembro como festa de Todos os Santos já foi largamente celebrado e depois decretado em 835.

A vigília de Todos os Santos é chamada em inglês All-Hallows-Eve(ning), daí o nome “Halloween”, que designa hoje o costume dos celtas pagãs que sobreviveu na Irlanda e seus imigrantes nos EUA, de onde é reativado pela indústria cinematográfica e comércio para adolescentes.

 

1ª leitura: Ap 7,2-4.9-14

Este capítulo interrompe a sequência dos selos (segredos apocalípticos, cf. 4,2-9; 5,1 etc.) que vão sendo abertos pelo Cordeiro, para indicar que vale a pena resistir e manter a fidelidade. O povo fiel, que vem de todo os cantos, é aquele que faz o caminho trilhado pelo Cordeiro.

Os primeiros versículos respondem à pergunta feita em 6,17, sobre quem pode escapar da ira de Deus e do Cordeiro: “Quem poderá ficar de pé?” (Sl 76,8; 13,3). A Bíblia do Peregrino (p.2953) comenta: Este capítulo dá a resposta. Antes do sétimo selo, da grande conflagração, há um episódio de seleção e preservação, exatamente segundo o esquema de Ez 9, ou seja, a marca dos inocentes. Repete-se o esquema de Ex 12, a marca das moradias protegidas do extermínio; o esquema de Noé salvo na arca (Gn 6-8); o esquema da escatologia (Is 26,20-21). Ora, se em tais textos se tratava de uma proteção interna, o Apocalipse liga a proteção ao destino glorioso definitivo, contemplado em visão.

Eu, João (1,9)

Em vez do costumeiro “naquele tempo”, nossa liturgia introduz a leitura com a auto- apresentação do autor do Ap cujo nome é “João” (cf. 1,4.9). Como o estilo deste livro é tal diferente do quarto evangelho, não supomos o mesmo autor. Aliás, como autor (ou fonte) do quarto evangelho se apresenta o “discípulo amado” (Jo 13,22; 19,25-27; 20,2-10; 21,7.20.24; 18,15?) que fica no anonimato. A tradição cristã lhe deu o nome de João (o filho de Zebedeu, cf. Jo 21,2), mas esta atribuição é contestada hoje.

Vi um outro anjo, que subia do lado onde nasce o sol.  Ele trazia a marca do Deus vivo e gritava, em alta voz, aos quatro anjos que tinham recebido o poder de danificar a terra e o mar, dizendo-lhes: 3″Não façais mal à terra, nem ao mar nem às arvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus” (vv. 1-3).

A cena se inspira em Ez 9 (cf. leitura de 4ª feira da 19ª semana, ano par). Em Ez 9 são seis os executores ou carrascos às ordens de um sétimo encarregado de selar ou marcar os inocentes. Em Ap são quatros anjos que controlam os quatros ventos (Jr 4,11-12; 49,36; 51,1-2; Eclo 39,28), e um quinto anjo que dá ordens e é encarregado de selar.

A “marca” (ou: “selo”) é instrumento ou garantia de autoridade (1Rs 21,8, selo real; Jr 22,24, selo do Senhor; Est 8,2). Pode-se entender o selo como um sinal de propriedade (os homens que o recebem pertencem a Deus), ou então como um sinal de salvação (como em Ez 9; um selo que distingue os que Deus protege). Estes dois aspectos não são exclusivos um do outro, como o demonstra a utilização (atestada desde o séc. II, mas talvez já em 2Cor 1,22) do vocábulo “selo” para designar o batismo. A “marca de Deus vivo” pode ser o nome trinitário recebido no batismo ou o próprio Espírito que se imprime (cf. 2Cor 1,22).

Ouvi então o número dos que tinham sido marcados: eram cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel (v. 4).

Quem são estes 144 mil? 144.000 são 12x12x1000: o quadrado do doze (número sagrado), multiplicado por mil: a multidão dos fieis de Cristo, povo de Deus, novo Israel (Gl 6,16; cf. Tg 1,1; Ap 11,1; 20,9), marcados com o “selo” divino (Rm 4,11), eles escaparão às pragas (cf. Ex 12,7-14).

Alguns pensam que são os judeus fiéis do AT, apelando aos sete mil de 1Rs 19,18 no ciclo de Elias. Ou então judeus convertidos do quais Tiago falava em dezenas de milhares (At 21,20). Outros já pensam que são cristãos, como em 9,4 e 14,1; mas no texto os 144 mil se contrapõem à “multidão inumerável” de toda a nação e língua (v. 9), que pode recordar a promessa feita a Abraão (Gn 22,17). O número 12x12x1000 sugere uma multidão diferenciada e ordenada. A menção nominal das “tribos” descreve o novo “Israel” (cf. Jo 1,47.49; Tg 1,1), o novo povo de Deus: 144.000, ou seja, 12.000 de cada uma das doze tribos. O número total simboliza a plenitude do povo de Deus.

Em vv. 5-8 (omitidos em nossa liturgia) segue a enumeração das 12 tribos (seguindo uma tradição rabínica, omite o nome de Dã, cf. Jz 18; 1Cr 4-7, e acrescenta Manassés). Esta lista pode fazer pensar nos judeus convertidos distintos da imensa multidão (vv. 9-10) que representaria os cristãos vindo do paganismo. Trata-se mais provavelmente do conjunto do povo de Deus, primeiro enumerado aqui segundo o tipo oferecido por Israel no deserto, e a seguir considerado no seu cumprimento celeste e glorioso.

Depois disso, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: “A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro” (vv. 9-10).

Desta vez, é a “multidão” imensa e universal dos cristãos, “de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas,” (cf. Mt 28,19; At 1,8; 2,9-11; Rm 16,26; Ef 3,6 etc.), os mártires já em posse da felicidade celeste (v. 14; 15,2-4).

Eles vestem uma roupa e empunham um emblema. Estão preparados para a grande liturgia, segundo as “palmas”, ou seja, os “ramos” mencionados em Sl 118,27 (alusão a festa das Tendas, Lv 23,40), e os da entrada real de Jesus em Jerusalém (Mc 11,9p, Domingo de “Ramos”). Os ramos de palmeira tornaram-se atributo simbólico das imagens dos mártires porque dando sua vida participaram da paixão de Cristo.

As palmas do triunfo evocam a alegre festa das Tendas (no v. 15, a tenda de Deus torna-se sua moradia, cf. 21,3; Lv 23,33-43 etc.). Durante esta festa o povo entrava em cortejo no recinto do Templo agitando palmas e cantando o Sl 118, cujo v. 25 contém esta prece: “Salva-nos agora (em hebraico: Hosana)!”, a qual talvez corresponda aqui o v. 10, em que todos cantam a vitória ou “salvação” (Ex 15,2; Sl 74,12; 118,15; Is 56,1 etc.) do entronizado (Sl 47,9; cf. Sl 118,25).

Todos os anjos estavam de pé, em volta do trono e dos Anciãos e dos quatro Seres vivos e prostravam-se, com o rosto por terra, diante do trono. E adoravam a Deus, dizendo: “Amém. O louvor, a glória e a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força pertencem ao nosso Deus para sempre. Amém” (vv. 11-12).

Acrescenta-se outra multidão celeste: todos os anjos – “seu número era milhões de milhões e milhares de milhares” (4,11; cf. a cena de Dn 7,9s) junto com os vinte e quatro anciãos ao redor do trono (4,4.10; 5,5-8.11.14) e os quatro seres vivos (4,6-8 etc., inspirados na visão de Ez 1, tornaram-se os símbolos dos quatro evangelhos, segundo S. Irineu). Todos eles acrescentam um setenário de aclamações: “o louvor, a glória e a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força (v. 12; cf. Sl 29,1s).

E um dos Anciãos falou comigo e perguntou: “Quem são esses vestidos com roupas brancas? De onde vieram?” Eu respondi: “Tu é que sabes, meu senhor”. E então ele me disse: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (vv. 13-14).

A pergunta de “um dos anciãos” (5,5) é recurso do gênero (p. ex. Ez 37,3; para o jogo de cena cf. Zc 6,4-5; 4,4-14). Trata-se de uma pergunta didática, destinada a chamar a atenção, concentrando-a num ponto concreto.

A “grande tribulação” é uma perseguição violenta até o martírio (Mt 24,21), é uma participação na paixão de Cristo. Trata-se da provação escatológica (cf. Dn 12,1; Mt 24,21; Mc 13,19; Ap 3,10), da qual as perseguições são uma manifestação. Das perseguições, a de César Nero (cujo número em hebraico é 666, cf. 13,18) era o protótipo da de Domiciano (95 d.C.). Enquanto Nero só perseguia os cristãos em Roma em 64-67 d.C. (matando Pedro e Paulo, cf. as duas testemunhas em 11,7-8), Domiciano os persegue em todo império (provável data da redação do Ap, cf. 1,9 e o cap. 13). Uma pesquisa recente, porém, sustenta que o perseguidor seja o imperador Trajano (98-117).

O paradoxo de “alvejar no sangue” (limpar em 1Jo 1,7) revela o caráter intelectual da imagem. Is 1,18 contrapôs púrpura e neve; Is 63,3 disse que o sangue (do inimigo) mancha a roupa. O autor parece adaptar a bênção de Judá: “Lava sua roupa em vinho e sua túnica no sangue de uvas” (Gn 49,11).

O sangue simboliza a eficácia expiatória da morte de Jesus (Rm 3,25; 1Cor 11,25; Ef 1,7; etc.). Este dom é aceito aqui por aqueles que recebem seus efeitos. O sacrifício (sangue) de Cristo na cruz perdoou os nossos pecados (cf. Is 53; Mt 26,28; Jo 19,34), nos justifica e purifica.

 

2ª leitura: 1Jo 3,1-3

Ao autor da primeira carta de João preocupam os critérios para discernir: “nisto conhecemos, … sabemos que, … consta-nos, …”. Como um cristão autêntico é reconhecido? Ele cumpre os mandamentos (2,3-5; 3,24), não peca, mas pratica a justiça (2,29; 3,10), ama o irmão (3,10.19; 4,6.7.9.12), confessa Jesus como Messias e Cristo (4,2) e possui o Espírito (2,27; 4,13).

Como Deus é “justo” (1, 9; 3,7), “todo aquele que pratica a justiça nasceu dele” (2,29), então é “filho” dele. O capítulo 3 descreve os “filhos de Deus” e os “filhos do diabo” (3,1-10); esse dualismo (contraposição) é típico dos escritos joaninos (cf. luz e trevas, Deus e mundo, Cristo e Anticristo, verdade e mentira etc.). Nossa liturgia de hoje se detém só na primeira parte (filhos de Deus).

Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai (v. 1).

Para os primeiros cristãos, a fé em Cristo era uma coisa tal nova e transformadora igual à uma nova criação (cf. 2Cor 5,17) ou uma geração pelo próprio Deus (Jo 1,12-13; 3,6). Esta filiação é dom, “grande presente de amor”.

No projeto inicial da criação (Gn 1,28), a fecundidade é fruto do amor conjugal, assim a nossa filiação brota do “amor” de Deus (3,1). O “mundo” é incapaz de descobrir em Deus “o Pai”, que em seu Filho nos revela seu “amor” (4,8-9), tampouco pode conhecer os cristãos na sua condição de filhos de Deus (cf. Jo 15,21; 16,3; 17,25).

No AT, Deus é Pai do povo inteiro e do rei que o representa (cf. Ex 4,23; Sl 2,7). No NT, paternidade/filiação é uma revelação central (Jo 1,12; Rm 8,14-17): o filho se assemelha naturalmente a seu pai (Gn 5,3) e pode também parecer quando imita sua conduta.

Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é (v. 2).

Em v. 2 temos a tensão escatológica, ou seja, entre “já“ e “ainda não”: “já somos…, mas nem sequer se manifestou o que seremos”. Na segunda vinda (manifestação, parusia) de Cristo, o olhar (a visão) nos transformará (cf. Sl 34,6): “o veremos tal como ele é” (na sua natureza verdadeira e divina).

Todo o que espera nele, purifica-se a si mesmo, como também ele é puro (v. 3).

Quem crê em Jesus, espera pela sua segunda vinda. Por sua filiação batismal, o cristão já se parece com Cristo, mas deve esforçar-se por afirmar a sua semelhança: deve ser “puro” e “justo” como Ele (2,29; 3,3.7). Na Bíblia, além da pureza exterior que capacita para participar do culto no AT (cf. Mc 7,23), ser “puro” significa sinceridade do coração, transparência sem segundas intenções (cf. Mt 5,8; Tg 1,27).

No dia de Todos os Santos, esta mesma leitura pode nos inspirar para aprofundar a “vocação universal à santidade”, expressão do Vaticano II (LG 39-42).

 

Evangelho: Mt 5,1-12a

Em Mt, Jesus expôs o espírito novo do reino de Deus (4,17) num discurso inaugural (o primeiro de cinco neste Ev), chamado de ”sermão da montanha”, iniciando-o com as bem-aventuranças.

Em Lc, o mesmo discurso, porém menor, acontece ”na planície” (Lc 6,17.20-49). Como se pode verificar nas diferenças entre os evangelhos de Mt e Lc (ex. na infância e nas aparições de Jesus), ambos os evangelistas não se conhecem, escreveram independentemente um do outro, mas copiaram grande parte do evangelho mais velho, de Mc. Mas em Mc não temos este discurso. A teoria das duas fontes diz que Mt e Lc usaram ainda outra fonte escrita (além de Mc) que se perdeu na história. Os peritos da Bíblia a reconstruíram e a chamam de ”Q” (da palavra alemã Quelle = fonte): uma coleção catequética de palavras (não de ações, mas de parábolas, ensinamentos) de Jesus (e algumas de João Batista). Outra teoria propõe que um redator (Deutero-Marcos) poderia reeditado Mc com algumas mudanças e acréscimos (com algum material de Q), porque chama atenção o fato de que o sermão está inserido, em Mt e Lc, praticamente no mesmo lugar: depois da sequência de Mc que informa de onde se juntou a grande multidão que seguia Jesus, de todo Israel e até regiões vizinhos, “da Galileia, da Judeia… até Sidônia” (Mc 3,7-10; Lc 6,17-19; Mt 4,23-25).

Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v. 1).

“Começou a ensiná-los” (vv. 1-2; lit. “abriu a boca” (cf. Is 53,7; Ez 3,27; Sl 78,2). Jesus não se retira da multidão (cf. 14,23p) e nem se senta para descansar.

A introdução própria de Mt quer lembrar a seus leitores judeu-cristãos a autoridade tradicional: Moisés no “monte” Horeb/Sinai (cf. Ex 19-20). O sermão da montanha é como a constituição de um novo povo de Deus com Jesus promulgando a nova lei.

Os rabinos (mestres judaicos) costumam “sentar” ao ensinar (daí a palavra “catedral”, é o lugar onde está a cátedra=cadeira=sede do bispo). Todo discurso é dirigido não só aos discípulos, como pode parecer, mas ao povo todo, como consta no final do sermão (7,28).

O início desta nova (interpretação da) Lei não são mandamentos, como era na antiga Lei de Moisés que iniciou com o decálogo (10 mandamentos) no Sinai (cf. Ex 20). Jesus começa com felicitações (“bem-aventuranças”) anunciando valores.

Em Mt, Jesus usa a terceira pessoa (“os”, só em v. 11 muda para “vós”); em Lc, a segunda (“vós”). Lc só conhece quatro bem-aventuranças (Lc 6,20-23) e preserve mais a versão original que frisa a mudança de situações sociais entre esta e a futura (cf. 16,25). Mt, por sua vez, apresenta oito (ou nove, com v. 11) bem-aventuranças como caminho de vida ética e espiritual (Mt 5,3: pobres no espírito) com promessas de recompensa celeste. Esta opinião de que a versão de Lc pode ser mais perto das palavras originais de Jesus se baseia na observação seguinte: é mais provável um evangelista (Mt) acrescentar algo às palavras de Jesus do que diminuir ou tirá-las (assim também os quatro ais em Lc 6,24-26 devem ser um acréscimo de Lc; o mesmo argumento vale para as duas versões do Pai-Nosso em Mt 6,6-9 e Lc 11,1-4).

”Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra (vv. 3-6).

Em Lc, a situação dos “pobres” (economicamente, cf. Dt 15,1-11; Is 29,10; Sl 72,4.13; 74,21; 1Sm 2,8 e Lc 1,52-53), que são também os “famintos” (Sl 58,7; Sl 107,9; Jl 2,26) e os “aflitos” que choram (Is 25,8; 30,19; Sl 56,9; 126,5-60), é relacionada à posse do reino. Mt destaca mais a ética e espiritualiza; ele retrata as atitudes do próprio Jesus nestas bem-aventuranças indicando um caminho para qualquer discípulo que queira seguir.

O AT (Antigo Testamento) às vezes expressava felicitações como essas falando de piedade, de sabedoria e de prosperidade (Sl 1,1-2; 33,12; 127,5-6; Pr 3,3; Eclo 31,8; etc). No espírito dos profetas, Jesus lembra que também os pobres participam das suas bênçãos: as três primeiras bem-aventuranças (Mt 5,3-5; Lc 6,20-21) declaram que pessoas comumente tidas como infelizes e amaldiçoadas são felizes, estão aptas para receber a benção do reino. As bem-aventuranças seguintes se referem mais diretamente a atitude moral do homem. Outras bem aventuranças de Jesus se encontram em Mt 11,6; 13,16; 16,17; 24,46; Lc 11,27-28; etc. (cf. Lc 1,45; Ap 1,3; 14,13; etc.)

Cristo retoma a palavra “pobre” com o sentido moral que já se percebe em Sofonias (cf. Sf 2,3), explicitado em Mt 5,3 pela expressão “em espírito”, que não ocorre em Lc 6,20. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão disponíveis para o reino dos céus (cf. Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; Lc 14,13; Tg 2,5). A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância espiritual”, necessária para entrar no reino (Mt 18,1; Mc  9,33s, cf. Lc 9,46; Mt 19,13; 11,25), o ministério revelado aos “pequeninos” (cf. Lc 12,32; 1Cor 1,26s). Aos “pobres”, corresponde ainda os “humildes” (Lc 1,48.52; 14,11; 18,14; Mt 23,12; 18,4), os últimos em oposição aos primeiros (Mc 9,35), os pequenos em oposição aos grandes (Lc 9,48; cf. Mt 19,30p; 20,26p; Lc 17,10). Embora a expressão de Mt 5,3 enfatize o espírito da pobreza tanto no rico como no pobre, o que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva particularmente para seus discípulos (Mt 6,19s;  cf. Lc 12,33s; Mt 6,25p; 4,18s, cf. At 2,44s; 4,32s). Ele mesmo dá o exemplo de pobreza (Lc 2,7; Mt 8,10p) e de humildade (Mt 11,29; 20,28p; Mt 21,5; Jo 13,12s; cf. 2Cor 8,9; Fl 2,7s) identificando-se com os pequeninos e com os infelizes (Mt 25,45, cf. 18,5p).

Os “aflitos” comovem a Deus (cf. Ex 3,17; Is 48,10; 61,1-3) e “serão consolados” (v. 4; cf. Is 40,1; 2Cor 1,3-7; em Lc 6,21 “haverão de rir”). A Bíblia do Peregrino (p. 2325) comenta: É frequente ler no AT unidos “pobre e afligido”; não é raro que o segundo está unido com “oprimido e marginalizado”, e até se confundam por sua semelhança fonética. Sob esse pano de fundo as três primeiras bem-aventuranças poderiam ser tratadas unitariamente: Pobres e afligidos e oprimidos serão consolados com a terra e o céu.

Próprio de Mt é a “herança” da terra aos “mansos”, aos injustamente despossuídos (v. 5; citando Sl 37,11; cf. a partilha ideal da terra em Js 12-21). Alguns anos antes da redação do evangelho de Mt por volta de 80 d.C., a Guerra Judaica, os seja, a luta violenta contra os romanos para conseguir a independência de Israel, acabou em derrota (destruição de Jerusalém e do templo em 70 d.C.). Esse fato reforçou a posição pacífica de cristãos contra o movimento nacionalista dos judeus (zelotas; cf. o conselho de Gamaliel em At 5,34-39).

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (v. 6).

Mt não só fala dos famintos (25,35), mas dos que têm “fome e sede de justiça”. Como metáfora, fome e sede podem ter como objetivo o próprio Deus (Sl 42,2; 63,2: cf. Jo 6); aqui é a justiça que corresponde ao reino de Deus é palavra chave em Mt neste sermão (v. 20; 6,1.25.31.33); “serão saciados” (cf. Lc 1,53).

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (vv. 7-9).

Estas três bem-aventuranças são próprias de Mt. A “misericórdia” (v. 7) é um atributo principal de Deus (cf. Ex 34,6) e é aconselhada também ao homem, inclusive como bem-aventurança em Sl 41,2. Outra vez o passivo em grego (lit.: “serão tratados com misericórdia”) tem Deus como agente (cf. 6,12; 18,23-35; Pr 14,31; 19,17). Ele quer “misericórdia mais do que sacrifícios” (Os 6,6 citado duas vezes por Mt 9,13 e 12,7). A misericórdia (compaixão) é único critério no Juízo final de 25,31-46, já que o amor-caridade resume toda a Lei (cf. 7,12; 22,34-40p).

Os “puros de coração” (v. 8) são sinceros com Deus e com os homens (cf. Sl 24,4; Pr 12,11). Esta pureza interior se opõe à pureza meramente externa e ritualista (23,25-28). “Verão a Deus”, ver Deus é desejo e esperança suprema (Sl 11,7; 17,15; 63,3) que nem Moisés alcançou (Ex 33,20; cf. Jo 1,14.18; 14,9).

Parte essencial das profecias sobre o messias é o anúncio da “paz” (cf. Is 2,2-5; 9,5; 11,1-9; 42,1-4; cf. Lc 2,14; 19,38) e não a violência (Mt 5,38-48; 26,51s; cf. Ef 2,14-18; Cl 1,20). O messias (“Cristo”) é “Filho de Deus” com o Espírito de paz (pomba em 3,16p) seus discípulos (“cristãos”, At 11,26) também “serão chamados filhos de Deus” (cf. Jo 1,12; Rm 8,14-17; Gl 3,26; 4,6s; 1Jo 3,1s.9s), como título honorífico já se lê em Dt 14,1; Os 2,1.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus (vv. 10-12a).

Aos “perseguidos por causa da justiça” (v. 10), por serem justos ou vítimas inocentes (cf. Sb 2), pertence o “reino dos Céus” (como aos pobres em v. 3; cf. os famintos pela “justiça” em v. 6). Também esta sétima bem-aventurança é própria de Mt.

Só na oitava bem-aventurança (v. 11; Lc 6,23), Mt passa a falar para a segunda pessoa (“vós”, como em todo discurso de Lc 6), com o acréscimo: “alegrai-vos…” (também em Lc 6,23, ou seja, já na fonte Q). A chave de Mt está na mudança da causa, agora “sois vós”, perseguidos “por causa de mim”, Jesus Cristo (v. 11; cf. Sl 44,23; 74,22). Supõe a perseguição dos cristãos, aos quais Mt quer anima (cf. 10,23; 23,34).

Mas “alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (a segunda parte do v. 12 é omitida pela leitura de hoje, talvez por querer um final positivo ou atualizado: antes de nós não vieram os profetas do AT, mas 2000 anos de história da Igreja). Os discípulos de Jesus são sucessores dos profetas.

No AT, os profetas foram perseguidos por cumprirem sua missão (11,47; 2Cr 36,16), desde Elias por Jezabel (1Rs 19) até a figura exemplar de Jeremias, “o profeta queimado”, passando por Amós (Am 7). A perseguição por Jesus e seu evangelho é uma constante da Igreja desde a época dos Atos dos Apóstolos e tem lugar importante no Apocalipse (cf. 10,23; 23,34; 1Pd 4,4.12-19).

No estado laico de hoje, os cristãos não são perseguidos pela fé, mas às vezes, são discriminados quando querem se manifestar publicamente (alega-se que religião seja coisa apenas privada) ou por defender a ética frente à corrupção da maioria. Mas ainda existe perseguição de cristãos pela fé em vários países (islâmicos, comunistas,…).

O site da CNBB comenta: O sermão da montanha nos mostra a moral da Nova Aliança e começa com as bem-aventuranças, apresentadas no Evangelho de hoje, e que nos mostram as motivações e as virtudes que nos são necessárias para que assumamos os valores do Reino de Deus e possamos viver de forma madura o que nos é proposto por Jesus.

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