3 de Agosto de 2020, Segunda-feira: Jesus respondeu: “Vem!” Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus.

18ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Jr 28,1-17

Ouvimos hoje o conflito de Jeremias com os profetas falsos na época do rei Sedecias (598-587 a.C.) em Jerusalém. Lembramos o contexto histórico: O rei Joaquim havia se levantado contra o império neobabilônico, mas morreu. Seu filho Joaquin (= Jeconias) fracassou na defesa da cidade e o rei da Babilônia, Nabucodonosor, conquistou Jerusalém em 598 a.C., levando consigo todos os tesouros do templo. Deportou a elite de Jerusalém para o exílio, foi a primeira deportação à Babilônia (10.000 pessoas; entre elas, Ezequiel). Nabucodonosor substituiu Jeconias por Sedecias (cf. 2Rs 24).

Para os judeus piedosos, a derrota foi um choque. Jerusalém havia resistido por mais de 400 anos aos ataques de exércitos estrangeiros, assim se verificou a promessa divina da permanência da dinastia de Davi (2Sm 7) e de Sião, a colina de Jerusalém onde fica o templo e mora Javé Deus que a protege (Sl 46). Mas a deportação já foi profetizada em Jr 10,18; 13,19; 15,2; 16,13; 20,5s. A destruição e o incêndio da cidade (predito por Jr 19), porém, não aconteceram ainda.

Os sacerdotes e profetas do templo admitiram que a derrota devia-se a uma atitude religiosa errada; eles pararam o culto ao Baal e aos astros e também os sacrifícios de crianças (como se pode observar neste período, Jeremias não acusa mais estes abusos). Mas divulgaram uma visão otimista baseando-se nas promessas antigas de que Deus não abandonaria seu povo. A derrota por Nabucodonosor representaria apenas um castigo transitório e haveria um período de paz e prosperidade. Para Jr, porém, este otimismo inibe uma conversão verdadeira.

Nesse mesmo ano, no início do reinado de Sedecias, rei de Judá, no quinto mês do quarto ano, disse-me o profeta Ananias, filho de Azur, profeta de Gabdon, na casa do Senhor e na presença dos sacerdotes e de todo o povo: (v. 1)

Novamente encontram-se no templo os sacerdotes, profetas e todo o povo. É curioso que não figurem as autoridades civis (cf. caps. 7 e 26).

Sedecias era apoiado por Jeremias, mas o povo ainda considerava Jeconias como verdadeiro rei de Judá. Na ocasião da visita de emissários de países vizinhos, Jeremias se amarrou uma canga de boi (jugo) nos ombros, como gesto simbólico de que Deus colocou Nabucodonosor como rei sobre todas as terras (e sobre todos os animais do campo, cf. v. 14; 27,6) e seria necessário servi-lo: “Submetei o vosso pescoço ao jugo do rei da Babilônia, … e vivereis” (Jr 27,12).

O texto hebraico de v. 1 menciona duas datas contraditórias: o “início do reinado”, isto é 597, e o “quarto ano”, isto é 594 (o texto grego traz apenas esta última data, que talvez seja preferível). Isso quer dizer que Jeremias carregava o jugo nos ombros por quatro anos? Por ser o cap. 28 a continuação do cap. 27 talvez seja necessário corrigir a data mencionada em 27,1.

“Isto diz o Senhor dos exércitos, Deus de Israel: Quebrei o jugo do rei da Babilônia. Ainda dois anos e eu farei reconduzir a este lugar todos os vasos da casa do Senhor, que Nabucodonosor, rei de Babilônia, tirou deste lugar e transferiu para Babilônia. Também reconduzirei a este lugar Jeconias, filho de Joaquim e rei de Judá, juntamente com toda a massa de judeus desterrados para Babilônia, diz o Senhor, pois eu quebro o jugo do rei de Babilônia” (vv. 2-4).

Ananias fala em nome do “Senhor dos exércitos” contra as profecias de Jeremias que havia declarado que os vasos que restaram ainda no templo e no palácio do rei em Jerusalém também seriam levados para Babilônia (22,21s). A profecia sobre a volta de Jeconias contradiz a de Jeremias em 22,27.

Respondeu o profeta Jeremias ao profeta Ananias, na presença dos sacerdotes e de todo o povo que estava na casa do Senhor, dizendo: “Amém, assim permita o Senhor! Realize ele as palavras que profetizaste, trazendo de volta os vasos para a casa do Senhor e todos os deportados de Babilônia para esta terra” (vv. 5-6).

Jeremias nunca se precipita. Totalmente entregue ao Senhor, ele aguarda que a palavra do Senhor volte a ele (v. 12; cf. 42,7) para responder na qualidade de profeta, isto é, em nome do Senhor (cf. 15,17). Até lá, ele acolhe com simplicidade aquilo que um colega proclama como palavra inspirada.

Em todo o caso, Jeremias é solidário com o sofrimento das pessoas e deseja o bem do seu povo, e não quer obter crédito (como Jonas). O que mais desejaria ver senão o cumprimento de uma predição otimista do seu rival? Mas, não ao preço de uma perversão sem conversão.

“Ouve, porém, esta palavra que eu digo aos teus ouvidos e aos ouvidos de todo o povo: Os profetas que existiram antigamente, antes de mim e antes de ti, profetizaram sobre guerras, aflições e peste para muitos povos e reinos poderosos; mas o profeta que profetiza paz, esse somente será reconhecido como profeta, que em verdade o Senhor enviou, quando sua palavra for verificada” (vv. 7-9).

É possível que o Senhor tenha renunciado aos males que tinha encarregado Jeremias a anunciar (cap. 27)? Jeremias espera que sim (v. 6; cf. 17,12), embora formule muito educadamente uma objeção baseada no bom-senso (vv. 7-9); sendo que até então os profetas tem anunciado a desgraça – ou algumas vezes a salvação, porém somente depois da provação (cf. 23,19; 24,1) – é natural certa reserva diante de quem anuncia a salvação para já (v. 9).

Aqui, Jeremias não responde “em nome do Senhor”, mas “eu te digo” invocando a experiência histórica. Havia profetas de desgraças (guerras, aflições e peste) e de felicidades (paz, prosperidade, salvação): aos segundos se aplica a regra de Dt 18,22 (sobre a veracidade da profecia, cf. Dt 18,9-22). Se vários oráculos dos capítulos 31 e 33 se dirigem aos israelitas do norte no tempo do rei Josias, também Jeremias profetizou felicidades. Algumas se cumpriram, outras ficaram pendentes.

Neste confronto, Jeremias não pretende propor uma teoria completa, mas prega a conversão: não o que vai acontecer, mas o que o ser humano deve fazer para que a desgraça não aconteça; os anúncios de desgraças em Jr são condicionados.

Então o profeta Ananias retirou o jugo do pescoço do profeta Jeremias e quebrou-o; e disse Ananias, na presença de todo o povo: “Isto diz o Senhor: Deste modo quebrarei o jugo de Nabucodonosor, rei da Babilônia, dentro de dois anos, livrando dele o pescoço de todos os povos.” E foi-se pelo seu caminho o profetas Jeremias (vv. 10-11).

Também Ananias realiza uma ação simbólica que, se fosse inspirada numa palavra do Senhor, deveria determinar o futuro (cf. 13,1; 27,2). Ananias, profeta da corte, está interessado na volta imediata dos objetos do templo e dos governantes deportados. Quebrando o jugo de madeira com o qual Jeremias simboliza a submissão ao império, Ananias proclama a revolução, uma guerra santa contra a Babilônia. “Dentro de dois anos” significa que não se cumprirão sete anos a partir da deportação (cf. v. 1) até a libertação “de todos os povos”.

Jeremias não reage, não tem nada mais a dizer no momento. Espera por uma nova revelação de Deus.

Depois do v. 10, os masoretas (rabinos que fixaram as regras do texto hebraico nos séc. 8 a 11 d. C.) anotaram na margem do texto: “Metade do livro conforme a conta pormenorizada dos versículos”, ou seja: aqui estamos na metade do texto da Bíblia Hebraica (que coloca os profetas antes dos livros sapienciais).

Depois que o profeta Ananias havia retirado o jugo do pescoço do profeta Jeremias, dirigiu-se novamente a palavra do Senhor a Jeremias: “Vai dizer a Ananias: Isto diz o Senhor: Quebraste um jugo de madeira, mas em seu lugar farás um de ferro. Isto diz o Senhor dos exércitos, Deus de Israel: Pus um jugo de ferro sobre o pescoço de todas estas nações, para servirem a Nabucodonosor, rei de Babilônia, e lhe serão de fato submissas; além disso, dei-lhe também os animais do campo.” (vv. 12-14).

Mas uma vez recebida a “palavra do Senhor”, Jeremias, dócil instrumento de Deus, passa logo ao ataque, não por sua conta, mas sustentado por outro (vv. 15-16; 11,18; 20,27; Mt 10,19s).

Anuncia o “jugo de ferro”, que representa a repressão mais dura do império babilônico, provocado pela rebelião dos países submetidos. Enquanto Ananias se preocupa com a volta dos vasos sagrados (v. 3), Jeremias se preocupa, primeiramente, com a vida de seu povo (cf. 27,12).

Disse ainda o profeta Jeremias ao profeta Ananias: “Ouve, Ananias, não foste enviado pelo Senhor, e contudo fizeste este povo confiar em mentiras. Isto diz o Senhor: Eis que te farei partir desta terra; morrerás este ano, pois pregaste a infidelidade contra o Senhor” (vv. 15-16).

Jeremias profetiza muito contra as “mentiras” (dos ídolos: 3,23; 5,31; 10,14; 16,19; do culto do templo: 7,4.8; falsos projetos e juramentos na vida social: 3,10; 7,9; 9,1; 37,14; 40,16; falsificação da palavra de Deus: 8,8; falsidade na conduta dos sacerdotes e profetas: 6,13; 8,10; 23,14 e contra as profecias falsas: 2,8; 5,31; 14,14; 20,6; 23,25s.32; 27,10.14s; 29,9.21.23, fazendo que o povo confie em falsas seguranças: 28,15; 29,31; cf. 2,18.37).

Há um jogo de palavras hebraicas: “Não foste enviado pelo Senhor… Eis que te fará partir (lit: te enviarei para fora) desta terra”.

“Pois pregaste a infidelidade contra o Senhor” falta na versão grega (cf. 29,32); pode proceder de Dt 13,6. No contexto presente indica que as vãs ilusões equivalem à rebeldia contra o Senhor.

Naquele ano, no sétimo mês, morreu o profeta Ananias (v. 17).

A realização de uma profecia, dentro de um prazo breve (dois meses depois da profecia de Jeremias, cf. v. 1), é um sinal de que é autentica a mensagem de um profeta (cf. 20,6; 29,32; 45,5; Dt 18,21).

A Bíblia do Peregrino (p. 1916s) comenta: O autor deste relato quis concentrar numa página o confronto do profeta verdadeiro com o falso. Coloca seus dois personagens em destacado paralelismo: ambos trazem o titulo de profeta, ambos pronunciam oráculos com fórmulas proféticas tradicionais e participam de ações simbólicas semelhantes. O leitor atual sabe o que cada um deles representa: os contemporâneos gozam da mesma perspectiva? Sobre o fundo das semelhanças, é preciso destacar as diferenças: Hananias pronuncia uma predição precisa, Jeremias responde com um princípio de discernimento; Jeremias foi-se embora por seu lado, Hananias morreu segundo a predição.  

Evangelho: Mt 14,22-36 Ano A (Ano B e C: Mt 14,13-21)

Nos evangelhos desses dias, Mt segue o roteiro de Mc 6,14-52. Depois do banquete da morte (o martírio de João Batista, cf. lido no sábado passado e em 29 de agosto), Mc apresentou o banquete da vida, ou seja, a multiplicação dos pães para o povo (lida na versão de Mt no 18º domingo do ano A). Para não repeti-la, a liturgia de hoje saltou-a e apresenta já o trecho seguinte: a caminhada de Jesus sobre a água (cf. evangelho de amanhã nos anos B e C). Enquanto o evangelista com investigação histórica, Lucas (cf. Lc 1,1-4), omitiu esta narrativa simbólica de Mc 6,45-52, Mateus acrescentou outro simbolismo: a tentativa de Pedro de caminhar sobre as águas.

(Depois que a multidão comera até saciar-se,) Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho (vv. 22-23).

Depois da multiplicação dos pães, Jesus queria estar só para rezar (cf. Jo 6,15) e “mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar” (cf. 8,18.23-28, onde “Jesus entrou no barco e os discípulos o seguiram”). Envia-os ao meio do mar e os deixa sós, enquanto ele “subiu ao monte para orar a sós”. O monte é lugar próximo do céu, ou seja, de Deus (cf. 17,1-8p e os montes em 5,1; 24,3p; 26,30p; 28,16). Mt reforça a lembrança de Moisés e Elias no monte Sinai que assistiram uma teofania (Ex 19; 24; 33-34; 1Rs 19); Jesus fará sua manifestação (epifania, cristofania) em ação e palavra.

A barca, porém, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário (v. 24).

Em 8,23-27p, Jesus estava com os discípulos na barca durante a tempestade e acalmou o mar e o vento. Outra vez, os discípulos têm que experimentar a oposição dos elementos, água e vento, e mais ainda a ausência do Senhor (cf. 1Rs 19,11). A palavra grega “agitada” é usada mais para pessoas, pode-se imaginar a comunidade (“barca”) dos discípulos como aflita, atormentada, perseguida. Água, vento tempestuoso e noite são metáforas por tribulações, medo e morte (água: Sl 18,16s; 32,6; 69,2s.15; noite: Sl 91,5; 107,10-12; tempestade: Sl 107,23-32; Jn 1-2).

Pelas três horas da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar (v. 25).

Aproxima-se a aurora, hora do auxílio divino (cf. Ex 14,24.27; 2Rs 19,35; Sl. 90,14) por volta da “quarta vigília da noite” (lit., traduzido: entre 03 e 06h da manhã; cf. Mc 13,35); para os cristãos é a hora da ressurreição de Jesus (28,1).

Nesta hora, Jesus foi até eles “andando sobre o mar”. Em Mc 6,48, Jesus queria “passar na frente deles” (cf. Lc 24,28), oferecendo as costas ao olhar (cf. a passagem da glória de Deus diante de Moisés e Elias no monte Sinai/Horeb em Ex 33,18-23; 34,6; 1Rs 19,11). Conforme seu costume, Mt resumiu mais e tirou este detalhe.

Não se trata de uma passagem pelo mar a pé enxuto (Ex 14), nem pelos fundos do mar (Jó 38,16; Eclo 24,5), mas é um andar “sobre as águas”. Um sonho da antiguidade, não só dos judeus, mas de muitas culturas (cf. a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh 10,71-77: o deus solar pode correr sobre as águas). É próprio de Deus caminhar sobre as alturas do mar (Jó 9,8; cf. Sl 77,20) e dominá-lo (cf. 4,41; Sl 65,8; 77,17; 89,10; 107,29; Eclo 24,5s).

Quando os discípulos o avistaram, andando sobre o mar, ficaram apavorados, e disseram: “É um fantasma”. E gritaram de medo. Jesus, porém, logo lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (vv. 26-27).

Os discípulos não são capazes ainda de reconhecê-lo (detalhe comum nas aparições do ressuscitado, cf. Lc 24,16.31; Jo 20,15; 21,4). Então Jesus se identifica: “Sou eu”. Refere-se, à primeira vista, ao lado humano de Jesus que os discípulos já conhecem. Mas é também a clássica frase da auto-apresentação de Deus: em grego, o nome Yhwh (Javé) de Ex 3,14 e traduzido por “Eu sou aquele que sou” (cf. Dt 32,39; Is 41,4; 43,10.13; 45,18s; 48,12; 51,12) e depois por “Senhor”. Da mesma maneira, Jesus apresenta-se em Jo 8,24.28.58 (cf. Jo 18,5s). Mt (como já Mc) compreende esta narrativa como manifestação do ser secreto de Jesus, “Filho de Deus” (cf. 2,15; 3,17p; 4,3.5p; 8,29p; 11,27p; 14,33; 16,16; 17,5p; 21,37-39p; 22,2; 26,63; 27,40.43.53p; 28,19), daí a costumeira recomendação nos relatos de revelação sobrenatural: “Não tenhais medo” (cf. 1,20; 17,7; 28,5.10; Mc 16,6p; Lc 1,13.30; 2,10; At 18,9; 23,11; Gn 15,1; 21,17; 26,14; 38,13; 46,3; Is 41,13; cf. 10; 43,1.3).

Então Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.” E Jesus respondeu: “Vem!” Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus. Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!” Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (vv. 28-31).

Jesus ainda não acalma a tempestade, mas Pedro lhe responde. Para os leitores, ele é o primeiro dos que foram chamados por Jesus (4,18; 10,2). Agora o homem quer fazer o que Deus faz; coisa tal impossível como transportar montanhas (21,21p). Mas o pedido de Pedro mostra sua fé no impossível, a sua confiança naquele que tem toda autoridade (todo poder) sobre o céu e a terra (cf. 28,18). Pedro não age por impulso próprio nem tenta fazer o papel de mágico, mas age apenas por ordem do Senhor: “Vem”. Tem coragem de atender ao chamado de Jesus, mas depois teve medo, não mais o medo de um fantasma sobrenatural, mas o medo de afundar. Como em Sl 69,2s.15, ele pede socorro: “Senhor, salve-me” (cf. o grito dos discípulos em 8,25). Nele, o leitor reconhece seu próprio medo diante das ameaças: morte, insegurança, descrença, inimizade, doença, culpa. Mas Jesus “estendeu a mão” (como já o fez em 12,49 sobre seus discípulos, sua nova família), se aproxima e o salva no meio das dúvidas e fraquezas na fé (cf. 8,26; 16,8; 17,19s; 28,17).

Estes vv. 28-31 são próprios de Mt, mas podem se basear numa tradição como a aparição do ressuscitado diante de Pedro no mar (cf. Jo 21,7s, onde Pedro se atira no mar, enquanto os outros discípulos ficam na barca). Nesta cena de coragem e fracasso em seguida, o narrador antecipa o comportamento de Pedro na paixão de Cristo (26,33-35.69-75). Mt destaca o papel de Pedro também em 16,17-19; 17,24-27. O evangelista já sabe do martírio de Pedro (entre 65 e 67 d.C.) que se arriscou em Roma, seguindo Jesus no perigo e na morte da cruz.

Assim que subiram na barca, o vento se acalmou. Os que estavam no barco, prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (vv. 32-33).

Jesus subiu com Pedro na barca e “o vento se acalmou” (cf. 8,26). Em Mc, apesar da manifestação procedente dos pães, os discípulos continuam sem entender (Mc 6,52, cf. 8,17-21). Mas em Mt, eles “prostraram-se diante dele”. Este gesto, os judeus devem fazer diante de Deus (cf. os magos em 2,11), não diante de homens (cf. Est 3,1-6). Antecipando as profissões de Pedro em 16,16 e do centurião em 27,54, os discípulos o confessam “Filho de Deus”.

Mc assimilou a epifania dos pães à do mar porque em Jesus se manifesta o poder libertador de Deus, que já no êxodo saciou seu povo no deserto (Ex 16) e dominou o vento e o mar (Ex 14). A barca simboliza a Igreja, a comunidade que se sente pequena e ameaçada na ausência de Jesus (depois da sua ascensão ao céu). Mt, porém, destaca o papel de Pedro e convida o leitor para “transcendência”, superar seus limites, seus medos e sair da barca, arriscando-se ao seguir “em direção de Jesus”, com “fé” no poder salvador do “Filho de Deus”. Apesar de dificuldades, ventos, ondas contrários e da aparente ausência do Senhor, ele continua, como ressuscitado, presente no meio de nós e nos salva: Jesus é o “Deus conosco”, o Emanuel (cf. 1,23; 18,20; 28,20).

Obs.: O paralelo mais próximo é uma história budista de um irmão leigo que queria visitar um mestre e chegou à beira de um rio; mas não havia balsa nem barca: Impulsionado por pensamentos alegres em Buda, o irmão andou sobre a água. Mas no meio do rio, reparou as ondas; seus pensamentos em Buda se enfraqueceram e seus pés começaram afundar. Mas ele reforçou seu pensamento em Buda e continuou andando na superfície d’água (Jataka 190). As religiões hinduísta e budista têm uma tradição rica que fala em levitação na meditação ou voar sobre rios. É possível uma influência indireta desta tradição pré-cristã ao nosso texto bíblico, ou é uma simples convergência de experiências transcendentais? O diferencial cristão, porém, é o contexto: Para Mt, Jesus é o Filho de Deus que caminha em obediência ao Pai “à outra margem do rio” (para o “além”; cf. Elias e Eliseu em 2Rs 2). Não é qualquer caminho, mas o do amor e da obediência. O que segura na água, é a madeira da cruz.

Após a travessia desembarcaram em Genesaré. Os habitantes daquele lugar, reconheceram Jesus e espalharam a notícia por toda a região. Então levaram a ele todos os doentes; e pediam que pudessem, ao menos, tocar a barra de sua veste. E todos os que a tocaram, ficaram curados (vv. 34-36).

O evangelho de hoje termina com um resumo que serve de transição e ignora os conflitos anteriores. O judeu Jesus está no meio do seu povo simpatizante. Os sumários de curas são frequentes em Mt (4,24; 8,16; 9,35; 12,15; 14,14; 15,29-31; 21,14), assim o evangelista quer apresentar Jesus não só como um judeu fiel à lei e aos mandamentos, mas também o seu carinho e seu contato com o povo sofrido.

Mt retoma expressões de 4,24; 8,16; 9,20s, resumindo o relato de Mc 6,53-56. Os discípulos desembarcam em “Genesaré”; não se sabe muito bem, onde fica este lugar que deu nome ao lago de Genesaré, chamado também mar da Galileia ou de Tiberíades (cf. Jo 6,1 etc.); provavelmente está na margem oeste do lago perto de Magdala.

Como em 4,24, a notícia de Jesus se espalha para longe. Os homens da região levam a ele “todos os doentes”. Cheios de expectativa, estes querem “tocar a barra da sua veste”, como já fez a mulher hemorrissa em 9,20s, onde Mt especificou a roupa de Jesus: um manto com “barra” ou orla como judeus piedosos costumam vestir (Nm 15,38-40; Dt 22,12). Tocar esta orla é um gesto de petição (Zc 8,23; 1Sm 15,27). Através do contato mediato do manto, acontece o contato profundo com Jesus pela fé. Esse é o contato que cura também aqui.

O site da CNBB resume: O fato de Jesus caminhar sobre as águas é causa de assombro para os seus discípulos, principalmente porque, segundo o livro de Jó, somente Deus caminha sobre o mar, de modo que este fato revela aos discípulos que estão diante do verdadeiro Deus que se fez homem e está no meio de nós, mas inicialmente a surpresa é tão grande que gera dúvida em seus corações que, depois de serem iluminados pela fé, os levam ao reconhecimento da pessoa divina que está diante dele. Assim também nós, que recebemos muitas graças de Deus, só o reconheceremos quando nossos corações forem iluminados pela fé, de modo que possamos superar o nosso assombro inicial.

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