31 da Janeiro de 2019, Quinta-feira:

Leitura: Hb 10,19-25

Concluído a exposição da parte central (7,1-10,18), o autor anônimo de Hb começa examinar as consequências para a existência cristã. Na leitura de hoje descreve a situação religiosa dos cristãos (vv. 19-21) pra depois chama-los a corresponder de pleno coração a ela (vv. 22-25).

Sendo assim, irmãos, temos plena liberdade para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus. Ele nos abriu um caminho novo e vivo, através da cortina, quer dizer, através da sua humanidade. Temos um grande sacerdote constituído sobre a casa de Deus (vv. 19-21).

Chamando mais uma vez os leitores de “irmãos” (cf. 3,12), o autor da carta quer sua atenção para as exortações que se seguem depois da parte doutrinal.

O sacrifício (sangue, v. 19) de Jesus tirou os obstáculos e restrições da lei judaica e dos nossos pecados (cf. a liberdade dos cristãos em Gl 5,1.13; 2Cor 3,17). “Temos plena liberdade para entrar no santuário”, ou seja, na “casa de Deus” (v. 21), que não é mais o Templo em Jerusalém (destruído em 70 d.C.; cf. Jo 2,19-22), mas o próprio céu, onde Jesus ministra seu sumo sacerdócio intercedendo em nosso favor (cf. 8,1-2; 9,24). Jesus nos deu acesso livre a Deus, “abriu caminho novo e vivo através da cortina, quer dizer, através da sua humanidade” (talvez uma ilusão à ideia do corpo humano como invólucro da alma, cf. 6,19s; 9,7; Mc 15,38).

O tom dessa exortação é triunfal, porque os cristãos se encontram numa situação privilegiada, liberadas dos entraves e angústias que oprimiam as gerações anteriores. Foram superadas as barreiras entre os cristãos e Deus, não existem mais as separações do Antigo Testamento que só conhecia o sistema de separações rituais cuja incapacidade o autor já demonstrou antes (7,18-19a; 9,8-10; 10,1-4). Só no dia do Perdão (Yom Kippur), o sumo sacerdote, e só ele, podia entrar no lugar santíssimo do templo, onde se encontrava a arca da aliança (9,1-7): “Assim Aarão entrará no santuário: com um bezerro para o sacrifício expiatório… levará seu sangue para trás da cortina” (Lv 16,3.15). “A cortina separará o Santo do Santíssimo” (Ex 26,33).

Mas a esperada santificação ficava fora do alcance desses rituais exteriores, não se estabeleceu nenhuma mediação válida entre o povo e Deus. Só se fortaleciam as separações entre povo, sacerdote, vítima e Deus. Mas com Cristo tudo mudou.

Sua oferenda pessoal e perfeita aboliu as separações: entre vítima imolada de Deus, pois Jesus é uma “vítima sem mancha” (9,14) obediente e “levado a perfeição” (5,7s). Foi suprimida a separação entre culto e vida: em sua solidariedade, Cristo tomou em suas “súplicas” toda infelicidade humana e a transformou em oferenda (5,7s). Foi superada a separação entre o sacerdote e a vítima, porque no sacrifício são uma só pessoa, pois Cristo “se ofereceu a si mesmo” (9,14). Finalmente foi suprimida a separação entre o sacerdote e o povo, pois o sacrifício de Cristo é um ato de identificação completa com seus irmãos (2,11.17) que funda uma nova solidariedade (5,9). Cristo é um sumo sacerdote que inclui o povo em sua própria consagração (10,14; cf. leitura de ontem).

Mas esta mudança radical se deve a mediação de Cristo e não por nossos próprios esforços. Quem quer avanças em sentido de Deus por seus próprios meios e de modo individualista, está enganado. A entrada no santuário é só possível “pelo sangue de Jesus” (v. 19; cf. 9,12; Paulo fala da importância da cruz, cf. 1Cor 1,23), este é “um caminho novo e vivo” que ele inaugurou “através da sua humanidade”, ou seja, seu corpo crucificado e glorificado (v. 20). Só se realiza sob sua guia como “sumo sacerdote” com autoridade “sobre a casa de Deus”.

Aproximemo-nos, portanto, de coração sincero e cheio de fé, com coração purificado de toda a má consciência e o corpo lavado com água pura. Sem desânimo, continuemos a afirmar a nossa esperança, porque é fiel quem fez a promessa. Sejamos atentos uns aos outros, para nos incentivar à caridade e às boas obras. Não abandonemos as nossas assembleias, como alguns costumam fazer. Antes, procuremos animar-nos mutuamente, e tanto mais quanto vedes o dia aproximar-se (vv. 22-25).

A superação das separações antigas é a razão desse convite: “Aproximemo-nos” (v. 22; cf. 4,16; 7,25; 12,18.22; cf. 1Pd 2,45) “portanto, de coração sincero e cheio de fé, com coração profundo de toda má consciência e o corpo lavado com água pura” (v. 22; lembrando o batismo cf. 1Pd 1,22-23; 3,21). O banho de purificação érea um dos ritos prescritos aos sacerdotes (Ex 30,18-21). Agora todos os crentes possuem o direito de se aproximar que era reservado antes somente ao sumo sacerdote (9,7). E gozam de um privilégio ainda maior, pois são autorizados de entrar num santuário maior, não feito por mão humana (8,5; 9,24), e não só um dia por ano, mas esse direito é valido para sempre.

Mas a primeira condição fundamental para avançar neste “caminho novo e vivo” (v. 20) é a fé e não apenas o esforço humano. Já em 2,17, o autor apresentou Jesus como “sumo sacerdote fiel” e insistiu na fé na parte seguinte (3,1-4,14). Agora depois da grande exposição, convida os ouvintes a se aproximarem de Deus “de coração sincero e cheio de fé”, ou seja, aderirem a Cristo mediador. No próximo cap. falará sobre uma “nuvem de testemunhas” (12,1), as realizações da fé ao longo da história do AT (11,1-40).

Aqui alude aos sacramentos da fé, ao batismo (v. 22) e a eucaristia (cf. v. 19s).  O autor da carta quer levantar o ânimo da comunidade (vv. 23.25), fortalecer “a nossa esperança, porque é fiel quem faz a promessa” (v. 23, cf. 6,11-20) e nos quer “incentivar à caridade e às boas obras” (v. 24; cf. 6,10). A mensagem recebida não é apenas uma verdade revelada, mas ao mesmo tempo, um convite e uma promessa, portanto nossa fé deve se traduzir em esperança (vv. 23.36; 12,1-3) e caridade fraterna (v. 24; 13,1-3.16).

Quando o autor estava escrevendo (antes de 70 ou mais provavelmente perto de ano 90 d.C.), vários cristãos batizados se desanimaram e desistiram de participar da comunidade e da missa. Como hoje é necessário exortar: “Não abandonemos as nossas assembleias, como alguns costumavam fazer. Antes procuremos animar-nos mutuamente” (v. 25a). A união com Jesus no batismo e a comunhão na missa com Deus se completarão quando formos introduzidos no descanso definitivo quando “o dia (do Senhor) aproximar-se” (v. 25b).

À medida que a mediação de Cristo é o único caminho para a Vida, afastar-se de Cristo constitui um mal sem remédio, como o autor já deu a entender em 3,7-4,11; 6,4-6 e o repete em termos bastante vigorosos (vv. 26-31, omitidos por nossa liturgia).

Obs.: O católico pode ficar confuso ao ler todo este “sermão sacerdotal” na carta aos Hb, que fala do sacerdócio de Jesus e dos cristãos, mas não daquele dos sacerdotes (padres). Em português temos apenas uma palavra “sacerdote” para expressar duas palavras diferentes na língua original (grega) do NT: ‘iereus (usado em Hb) e presbíteros (apelidados padres). Podemos dizer em resumo:

  1. Apenas um possui o sacerdócio: Jesus, o único mediador e sumo sacerdote.
  2. Todos os fieis participam desse sacerdócio de Cristo, ou seja, podem oferecer se a Deus, fazer da sua vida cotidiana uma oferenda, reconhecendo que essa vida é o mais belo presente que Deus dá para servir a nossos irmãos (13,15s). Nesse ponto, católicos e protestantes partilham a mesma fé.
  3. Para que os cristãos possam ser englobados por esse sacrifício único de Cristo, os católicos consideram necessário que a mediação única de Cristo seja tornada presentes por homens que são apenas sinais dela, “sacramentos” dessa mediação: os sacerdotes (padres, bispos). Mas o sacramento (ministerial) do sacerdócio está a serviço do sacerdócio essencial e comum (cf. Vaticano II, LG 10; 34; UR 22).

Evangelho: Mc 4,21-25

No meio do discurso das parábolas em Mc 4 (seguido por Lc 8,16-18) apresentam-se duas sentenças sapienciais que são suscetíveis de diversas interpretações, conforme os contextos nos quais são utilizados. No presente contexto (cf. vv. 1-20: a parábola do semeador, evangelho de ontem), devem ser relacionadas com o ensinamento de Jesus: Sua palavra é semente que deve brotar e trazer frutos em terra boa (na vida dos ouvintes, cf. vv. 14-20), assim seu ensinamento é uma luz que é preciso fazer brilhar (na vida das pessoas) e da qual os beneficiários são de certo modo responsáveis.

“Quem é que traz uma lâmpada para colocá-la debaixo de um caixote, ou debaixo da cama? Ao contrário, não a coloca num candeeiro? Assim, tudo o que está escondido deverá tornar-se manifesto, e tudo o que está em segredo deverá ser descoberto. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça” (vv. 21-23).

A pergunta dupla com a resposta pertence ao gênero de regras da prudência (cf. Mc 2,21s). O caixote, ou seja, alqueiro (lit.) era uma medida de grãos, que não faltava nos lares da época, por ser necessário para medir o dízimo. Servia também para colocar por cima da chama de lâmpada de óleo, assim apagando-a sem causar fumaça. Seria absurdo trazer a lâmpada para logo apagá-la. Aqui a comparação se refere ao “mistério do reino de Deus” que foi dado aos discípulos (v. 11). Jesus não traria a luz (iluminação pela palavra) para ser escondida.

Quem recebe a palavra de Jesus, não deve esconder esta luz, mas “a coloca num candeeiro” (cf. Sl 18,29; 27,1; 36,10; 119,105; Pr 6,23 etc).  “Assim o escondido se tornará manifesto, e tudo que estava em segredo, deverá ser descoberto” (v. 22; cf. Jo 1,1.5; 3,19-21). A frase combina com o segredo messiânico em Mc que “está escondido”, mas “deverá tornar-se manifesto” depois da ressurreição (cf. 9,9; 16,7s).

Lc repetiu o v. 21 em Lc 11,33. Mt aplicou este versículo à comunidade que ouviu as bem-aventurança: ela não se deve esconder, mas ser a “luz do mundo” e brilhar com suas boas obras (Mt 5,14-16). O v. 22 encontrou-se também na fonte Q (coleção perdida, mas preservada em partes de Mt e Lc) para motivar um anúncio sem medo (Mt 10,26ss; Lc 12,2ss).

A frase “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” é um apelo necessário para perceber o alcance do ensinamento figurado e se esforçar para entender (cf. v. 3; 7,16).

Jesus dizia ainda: “Prestai atenção no que ouvis: com a mesma medida com que medirdes, também vós sereis medidos; e vos será dado ainda mais. Ao que tem alguma coisa, será dado ainda mais; do que não tem, será tirado até mesmo o que ele tem” (vv. 23-25).

Depois de chamar a atenção dos ouvintes (vv. 23-24; cf. vv. 3.9), Mc fala sobre a medida: “com a mesma medida com que medirdes, também vós sereis medidos” (v. 24b). Deus reage à medida com o homem mede (cf. a misericórdia em Mt 5,7; 25,31-46 e o perdão em Mt 6,12.14s; 18,23-35). Não restringe esta frase aos critérios do julgamento como a fonte Q fez e os outros evangelistas especificam (Mt 7,1s; Lc 6,37s). No contexto de Mc, a medida se refira talvez ao pensamento iluminado pela Palavra que trará mais benefícios (“frutos”, vv. 8.20) ainda: “e vos será dado ainda mais” (v. 24c; cf. Pr 9,9: “Dá ao sábio e ele se tornará mais sábio; ensina o justo, e ele aprenderá ainda mais”). Mas quem a esconder, vai perder ainda sua lucidez (“até mesmo o que ele tem”; v. 25b), porque age contra a razão quem não aceita a luz de Cristo e quem a esconde “debaixo de um caixote ou debaixo da cama”, perde o juízo (v. 21). É a Palavra que julga o ser humano: Quem a ouve e a aceita, enriquece; quem a rejeita, empobrece.

O v. 25 reflete a experiência de que os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres mais pobres, mas em relação à ação de Deus ganha outro sentido (também em Lc 8,18 e no final da parábola dos talentos/minas em Mt 25,29; Lc 19,26).

O site da CNBB resume: A nossa vida não pode ser como a dos fariseus, que aparentam ser uma coisa quando na verdade são outra. Somos chamados a ser filhos da luz e a viver como filhos da luz, testemunhando o amor e a presença de Deus para todas as pessoas. Os nossos pecados se opõem a esse chamado, dificultando o nosso testemunho e obscurecendo a presença de Deus. Mas Deus age com misericórdia para conosco, se procuramos nos reconhecer pecadores e buscamos a nossa conversão juntamente com a conversão dos nossos irmãos e irmãs. Mas se agimos como fariseus, demonstrando uma santidade que não temos e condenando os pecados das outras pessoas, Deus nos pagará com a mesma moeda.

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